domingo, 23 de janeiro de 2011

A ressurreição do princípio da alteridade na jurisprudência do STJ

Depois de um longo e bem aproveitado período de férias - do blog, não da Delegacia, onde tenho trabalhado incessantemente - volto a escrever neste espaço, cumprindo meu compromisso de manter os leitores bem informados acerca do Direito Penal (hum, isso soou meio pretensioso).

Assim, hoje vou me dedicar a um tema sobre o qual quero escrever desde o ano passado: trata-se do princípio da alteridade, que, se não chega a ser uma novidade, voltou à moda depois de sua menção em uma decisão do STJ. O caso foi julgado em novembro de 2009 e a ementa foi publicada logo em seguida. Ei-la: "A Turma concedeu a ordem de habeas corpus para trancar a ação penal instaurada em desfavor de ex-prefeito denunciado pela suposta prática do crime de poluição ambiental (art. 54, § 3º, da Lei n. 9.605/1998). In casu, o tribunal a quo consignou que a autoridade emissora da medida de controle ambiental descumprida seria o próprio paciente, a quem, na condição de representante máximo do município, caberia tomar providências para fazer cessar o dano e recuperar a área atingida. Contudo, segundo a Min. Relatora, essa conclusão conduz ao entendimento de que o acusado seria, ao mesmo tempo, o agente e o sujeito passivo mediato do delito, o que contraria característica inerente ao direito penal moderno consubstanciada na alteridade e na necessidade de intersubjetividade nas relações penalmente relevantes. Com essas considerações, reconheceu a atipicidade da conduta por ausência de elementar do tipo. Precedentes citados: HC 95.941-RJ, DJe 30/11/2009, e HC 75.329-PR, DJ 18/6/2007" (HC 81.175-SC).

Alteridade, ontologicamente falando, é "a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos" (obrigado, Wikipedia). Ou seja, em princípio, se cuida de um conceito que transcende o Direito. Na esfera criminal, todavia, o princípio da alteridade encontra estreita relação com o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos (ou ofensividade, ou lesividade). Sabe-se, e isso já foi explicitado em outros artigos aqui no blog, que o Direito Penal não se presta à tutela de atitudes internas, de ideologias ou da pura e simples moral. Somente irá se ocupar da lesão ou da ameaça de lesão a direitos relevantes (de índole constitucional, como bem ensina Luis Greco). Também a autolesão não justifica a incidência do Direito Penal (o suicídio, por exemplo, é conduta atípica - vale ressaltar que, embora alguns doutrinadores sustentem que nosso direito pune a autolesão no crime de fraude para recebimento de valor de seguro, tal concepção é equivocada, pois lá o que se tenta coibir é a desonestidade patrimonial, ou seja, o comportamento não se circunscreve ao próprio autor, mas sim atinge o direito de outrem). É nessa particularidade que reside o princípio em comento, não sendo equivocado dizer que a alteridade é apenas um aspecto, dentre tantos, da proteção de bens jurídicos. Podemos, por conseguinte, conceituar o princípio da alteridade como a exigência de lesão ou de ameaça de lesão a direito de outrem, mas nunca a interesse próprio, para que uma conduta possa ser reputada criminosa.

É com base neste princípio que muitos defendem a inconstitucionalidade da punição da posse de drogas para uso pessoal. Faltaria, ao comportamento, aptidão para ofender interesses alheios. A tese foi parcialmente adotada pela Suprema Corte argentina, quando da defesa da atipicidade da conduta se praticada em ambientes reservados, como no caso de uso de drogas por alguém em sua própria residência.

A decisão do STJ é interessante não apenas pela menção expressa ao princípio, mas também por evidenciar a incoerência na colocação simultânea de uma pessoa como algoz e vítima de um comportamento. Outro entendimento redundaria na consagração da bipolaridade jurídica.