quinta-feira, 27 de junho de 2013

Bob Dylan, protestos e Blowin' in the Wind

Em homenagem tardia às manifestações populares que embalam a população brasileira, nada mais adequado que Bob Dylan. A música em questão não é propriamente uma canção de protesto, mas sim sobre justiça e liberdade, e, principalmente, contra o silêncio conivente. Deve ser interpretado com cautela seu refrão ("The answer is blowin' in the wind"), que pode significar tanto que as respostas estão na nossa cara, ou seja, acessíveis a todos. Mas também pode encerrar a afirmativa de que são intangíveis como o vento, isto é, de difícil apreensão, não existindo verdades absolutas. Prefiro essa segunda interpretação, pois creio que o mundo é muito mais cinza do que preto e branco (o único preto e branco válido é o uniforme do Botafogo). Cada um interprete a letra como quiser, mas nunca é demais a advertência sobre soluções mágicas que encantam a massa, mas que se revelam perniciosas a longo prazo. Canja de galinha não faz mal a ninguém (mas essa já é outra música).
Abraços a todos.


segunda-feira, 10 de junho de 2013

Passo-a-passo da falsidade documental: para não errar a capitulação

A adequação típica dos crimes de falsidade documental, apesar de aparentemente complexa, depende da apreensão de alguns conceitos básicos, os quais, uma vez conhecidos, tornam a tarefa muito mais fácil, ainda que longe de ser simples. Assim, visando a auxiliar na capitulação da conduta, elaborei um passo-a-passo, que espero seja de alguma utilidade.

1º PASSO: VERIFICAR SE A CONDUTA POSSUI POTENCIALIDADE LESIVA

A potencialidade lesiva é um elemento comum a todos os crimes contra a fé pública, como moeda falsa (art. 289, CP), alteração de sinal identificador de veículo automotor (art. 311, CP) e as falsidades documentais. É revelada pela conjugação dos requisitos da mutação da verdade (immutatio veri) e da imitação da verdade (imitatio veri). Aquela pode ser definida como a modificação de algum aspecto juridicamente relevante da realidade (fraude) e, segundo Regis Prado, "é tão inata à falsidade que chega a ser supérfluo enumerá-la como elemento especial desse delito", pois "o propósito do falsário é justamente mudar o aspecto verdadeiro de um fato ou relação jurídica, substituindo-a por uma encenação mendaz". [1] Esta é a aparência de verdade, ou seja, uma reprodução crível daquilo que se tenta falsear, com obediência a padrões preestabelecidos, caso haja, conferindo-se, assim, verossimilhança à fraude, de modo que a falsificação grosseira não caracteriza crime contra a fé pública (Súmula nº 73, STJ). Por exemplo, se uma mulher adultera a própria carteira do conselho profissional a que pertence, trocando a foto original por outra, onde também é ela a pessoa retratada, mas de forma mais fotogênica, praticando o ato, portanto, por mera vaidade, não há crime (ausente a mutação da verdade). [2] De igual sorte, se uma pessoa fabrica uma série de cédulas de três reais, colocando-as em circulação, falece a imitação da verdade, o que impede a caracterização do crime contra a fé pública - por absoluta inaptidão para lesionar o bem jurídico tutelado -, embora possa subsistir crime de estelionato. Em síntese, a potencialidade lesiva é uma fraude (mutação da verdade) apta a ludibriar pessoas indeterminadas (imitação da verdade).

2º PASSO: DEFINIR SE O OBJETO MATERIAL DA CONDUTA É UM DOCUMENTO

Obviedade: para que se tenha uma falsidade documental, a fraude deve recair sobre um documento. Mas o que se entende por documento? Será que apenas o papel preenchido em algum tipo de linguagem por autor determinado ou determinável, contendo informações juridicamente relevantes, pode ser considerado documento (aqui já cito alguns requisitos, em negrito, para que haja um documento)? Ou podemos ter outros tipos de suporte? Arquivos digitais de texto podem ser considerados documentos? E se uma pessoa (exemplo de laboratório), simulando a escrita de outra, pinta em uma parede declarações de última vontade? A parede passa a ser um documento? De acordo com Mirabete, "o conceito de documento, na lei penal, é o restrito: toda peça escrita que condensa graficamente o pensamento de alguém, podendo provar um fato ou a realização de algum ato dotado de significação ou relevância jurídica". Arremata o autor dizendo que "o escrito deve ser feito em coisa móvel, que possa ser transportada, e não em imóveis". [3] A mesma linha de raciocínio é a adotada por Paulo José da Costa Júnior: "O documento, via de regra (grifo nosso), é um papel escrito. Mas nem todo papel escrito é um documento, pois nem todo papel tem força probante". [4] Logo em seguida o autor, citando Maggiore, insinua que outros materiais podem servir de suporte para um documento, como a tela, a pedra, o mármore, o papiro etc. [5]

3º PASSO: DEFINIR SE A FALSIDADE É MATERIAL OU IDEOLÓGICA

Na falsidade material existe uma espécie de vício na constituição do documento (o autor incide materialmente sobre o documento, daí o nome), que ora passaremos a denominar vício de forma. Esse vício pode ter duas origens: suporte mendaz (falsidade que recai sobre o suporte onde são apostas as informações por escrito, como o espelho de uma carteira de identidade fabricado pelo falsário em sua própria casa) ou preenchimento de um suporte verdadeiro por pessoa sem autorização para o ato (por exemplo, pessoa que preenche uma folha de cheque verdadeira, em branco, porventura encontrada no chão, passando-se pelo titular da conta-corrente; ou a adulteração de um contrato de locação, com supressão das informações originais e substituição por informações falsas). Deve ser notado que, por força do pressuposto da mutação da verdade, toda falsidade material, além de um vício de forma, também possui um vício de conteúdo (informação fraudulenta), pois não há falsidade sem fraude. Assim, o documento falsificado necessariamente conterá alguma informação que não condiz com a realidade. Já na falsidade ideológica há um vício exclusivamente de conteúdo. Ou seja, o documento é produzido sobre suporte verdadeiro e por pessoa com autorização para o ato. Todavia, há nele informações dissociadas da realidade. Se o titular de uma conta-corrente, por exemplo, assina um cheque em branco, entregando-o para que outrem preencha os valores em seu nome, caso seja aposto no título valor diverso daquele que deveria constar, haverá falsidade ideológica. Da mesma forma, se um médico atesta falsamente uma doença, para que seu paciente consiga dias de folga no trabalho, a falsidade será ideológica (suporte - receituário - verdadeiro, preenchido por pessoa autorizada para o ato). Todavia, se o paciente sorrateiramente subtrai o receituário do profissional e, imitando sua letra, elabora um atestado falso para si, a falsidade será material (suporte verdadeiro, pessoa não-autorizada), o que ocorre também se o talonário de atestados é fabricado pelo paciente em sua impressora pessoal (suporte falso). Resumindo: na falsidade material há vício de forma e de conteúdo, sobressaindo o primeiro; na falsidade ideológica, unicamente vício de conteúdo.

Obs: cuidado com as "pegadinhas" da lei! A previsão genérica das falsidades materiais está nos artigos 297 (falsidade material de documento público) e 298 (falsidade material de documento particular), ao passo em que a falsidade ideológica está prevista genericamente no artigo 299, todos do CP. Contudo, no artigo 297, § 3º, CP, há falsidades ideológicas inseridas no tipo penal, originalmente reservado à falsidade material.

4º PASSO: DEFINIR SE O DOCUMENTO FALSIFICADO (MATERIAL OU IDEOLOGICAMENTE) É PÚBLICO OU PARTICULAR

Documento público é aquele emitido por um órgão público, na pessoa de seus funcionários, em atividade típica da função pública desempenhada. Ou seja, não basta a emissão por um funcionário público. É necessário que ele o faça finalisticamente, atendendo às exigências de sua atividade. Não é necessário que o documento seja substancialmente público, bastando que seja formalmente público (ou seja, uma declaração de vontade, lavrada por instrumento público em cartório, é documento público, embora seu conteúdo seja particular). Documentos particulares são todos os demais, havendo nítido conceito residual.

Obs1: documentos particulares autenticados em cartório mantém sua natureza (não são considerados documentos públicos).

Obs2: Há que se ter cuidado com os documentos públicos por equiparação (artigo 297, § 2º, CP). São documentos de natureza particular, mas que, para fins de aplicação da lei penal, são tratados como documentos públicos. São eles: (a) os oriundos de entidades paraestatais; (b) os títulos ao portador ou transmissíveis por endosso, como o cheque, por exemplo; (c) as ações de sociedades mercantis (sociedades anônimas e em comandita por ações); (d) o testamento particular; (e) os livros mercantis.

5º PASSO: VERIFICAR CONFLITO APARENTE DE NORMAS A SER RESOLVIDO PELO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE.

Até o quarto passo, já se resolveu boa parte do problema. Já dá para decidir se a conduta se enquadra no artigo 297, 298 ou 299 do CP. Mas a tarefa ainda não está completa, pois esses dispositivos tratam dos documentos de forma ampla. E há certas categorias de documentos que exigem tipificação especial. Por exemplo, a falsidade ideológica de atestado médico está no artigo 302 do CP. O crime de registrar como seu o filho de outrem, assim como o crime de registro de nascimento inexistente (respectivamente, artigos 242 e 241 do CP), também são hipóteses especiais de falsidade ideológica. O mesmo ocorre com a falsificação de nota fiscal, crime contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, III, da Lei 8.137/90. Em todos esses casos, os dispositivos mais genéricos cederão espaço para aqueles mais específicos.

6º PASSO: ANALISAR A ABSORÇÃO DA FALSIDADE POR EVENTUAL CRIME-FIM

Consoante a Súmula nº 17 do STJ, o falso, quando se exaure no estelionato, é por ele absorvido. Ou seja, quando a falsidade é meio exclusivo para a prática de um crime patrimonial (cheque falsificado usado para compras em um mercado, por exemplo), o agente só responde por sua finalidade. Somente haverá responsabilização penal pela falsidade (em concurso de crimes) se esta mantiver sua potencialidade lesiva mesmo após o delito contra o patrimônio. Embora a súmula só mencione o estelionato, o raciocínio pode ser usado em outros crimes, como o furto mediante fraude.

Obs: no caso de falsidade e posterior uso pelo mesmo agente (uso de CNH falsificada pelo próprio motorista, por exemplo), embora haja divergência, prepondera a opinião de que o crime de falso absorve o crime de uso (artigo 304), sendo este um pós-fato impunível. Essa é a opinião, inclusive, do colendo STJ: "HABEAS CORPUS. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO E USO DE DOCUMENTO FALSO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. PRINCÍPIO DA ABSORÇÃO. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. 1. Em sede de habeas corpus, só é possível o trancamento da ação penal em situações especiais, como nos casos em que é evidente e inafastável a negativa de autoria e quando o fato narrado não constitui crime, sequer em tese. 2. Ao contrário do que afirma o impetrante, não se evidencia, estreme de dúvidas, a alegada atipicidade da conduta da paciente, tornando temerário o atendimento ao pleito deduzido, sobretudo porque a peça acusatória, nos termos do art. 41 do Código de Processo Penal, demonstra, em tese, a configuração do delito. 3. O entendimento sufragado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é de que se o mesmo sujeito falsifica e, em seguida, usa o documento falsificado, responde apenas pela falsificação. 4. Ordem denegada. Habeas corpus concedido de ofício, para trancar a ação penal quanto ao crime de uso de documento falso, devendo prosseguir no que concerne às demais imputações." (HABEAS CORPUS Nº 70.703 - GO, rel. Min. OG FERNANDES, julg. em 23 de fevereiro de 2012). Nesse mesmo diapasão, o STF: "HABEAS CORPUS - FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO - FATO DELITUOSO, QUE, ISOLADAMENTE CONSIDERADO, NÃO OFENDE BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO FEDERAL, DE SUAS AUTARQUIAS OU DE EMPRESA PÚBLICA FEDERAL - RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA O PROCESSO E JULGAMENTO DO CRIME TIPIFICADO NO ART. 297 DO CP - USO POSTERIOR, PERANTE REPARTIÇÃO FEDERAL, PELO PRÓPRIO AUTOR DA FALSIFICAÇÃO, DO DOCUMENTO POR ELE MESMO FALSIFICADO - 'POST FACTUM' NÃO PUNÍVEL - CONSEQÜENTE FALTA DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL, CONSIDERADO O CARÁTER IMPUNÍVEL DO USO POSTERIOR, PELO FALSIFICADOR, DO DOCUMENTO POR ELE PRÓPRIO FORJADO - ABSORÇÃO, EM TAL HIPÓTESE, DO CRIME DE USO DE DOCUMENTO FALSO (CP, ART. 304) PELO DELITO DE FALSIFICAÇÃO DOCUMENTAL (CP, ART. 297, NO CASO), DE COMPETÊNCIA, NA ESPÉCIE, DO PODER JUDICIÁRIO LOCAL - PEDIDO INDEFERIDO. - O uso dos papéis falsificados, quando praticado pelo próprio autor da falsificação, configura 'post factum' não punível, mero exaurimento do 'crimen falsi', respondendo o falsário, em tal hipótese, pelo delito de falsificação de documento público (CP, art. 297) ou, conforme o caso, pelo crime de falsificação de documento particular (CP, art. 298). Doutrina. Precedentes (STF).(...)" (HC n.º 84.533-9, rel. Min. Celso de Mello, DJE de 30.6.2004).


É claro que o roteiro não esgota o tema, até porque, para ser didático, algumas minúcias deixaram de ser tratadas. Também é evidente que, em um ou outro ponto, há opiniões divergentes. Mas, obedecendo a doutrina mais difundida, creio que será útil.

Abraços a todos!

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[2] A jurisprudência do STJ reconhece falsificação de documento público na troca de fotografia em carteira de identidade (claro, desde que possua potencialidade lesiva) e não mero crime de falsa identidade: "RECURSO ESPECIAL. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO. ADULTERAÇÃO DE CÉDULA DE IDENTIDADE PELA TROCA DA FOTOGRAFIA. ART. 297, DO CÓDIGO PENAL. Essa prática compromete a materialidade e a individualização do documento verdadeiro, por isso se identifica com o falso de que trata o art. 297, do Código Penal. (...)" (REsp. 1679-PR, rel. Min. William Patterson). Nesse mesmo julgamento, no voto-vista, assim se manifestou o Min. Carlos Thibau: "(...) Ora, não há dúvida de que a fotografia, como elemento sinalético de indivíduo, constitui parte juridicamente relevante do documento de identidade (...)." Evidentemente, há posições sustentando a ocorrência de falsa identidade, mas, segundo penso, equivocadas.

Em tempo: terminei o artigo durante a madrugada. Portanto ainda irei aperfeiçoá-lo, consignar as referências bibliográficas. Também devo colocar algo de jurisprudência. Mas não agora, quando o sono impera.