sábado, 21 de junho de 2014

Prescrição nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes (trecho do livro)

Com o encaminhamento dos originais do livro "Crimes Contra a Dignidade Sexual" à editora para diagramação e futuro lançamento do terceiro volume da série "Crimes em Espécie", transcrevo aqui pela última vez mais um trecho da obra. Agora é só aguardar a chegada do livro às lojas. Abraços a todos!

A Lei nº 12.650, de 2012, inovou o regramento da prescrição no Brasil, modificando o teor do artigo 111 do Código Penal. O dispositivo, que trata do termo inicial do prazo prescricional, prevê, como regra, o início de seu cômputo com a consumação do crime (I). Em caso de crime tentado, o prazo começa a correr com a prática do último ato executório (II). Apenas dois incisos traziam exceções à regra geral: nos crimes permanentes, o termo inicial é a data da cessação da permanência (III); e, nas hipóteses de bigamia e de falsificação ou alteração de registro civil, quando o fato se tornou conhecido (IV). [*]  A mencionada lei inseriu no artigo 111 o inciso V, assim redigido: “Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: (...) V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.” Ou seja, temos mais uma exceção positivada.

De início, cumpre ressaltar que o novo marco inicial do prazo prescricional não se aplica apenas aos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes do Código Penal. Ou seja, o inciso V não cobre apenas o Capítulo II do Título VI da Parte Especial do Código Penal. Ao se referir a crimes “previstos neste Código ou em legislação especial”, fica claro que a alteração alcança todos os crimes praticados contra crianças ou adolescentes que tenham a dignidade sexual como bem jurídico tutelado, como, por exemplo, os crimes previstos nos artigos 240 a 241-D do ECA.

Com a recente normatização, que por importar tratamento mais severo ao autor do crime deve ser considerada irretroativa, a prescrição só começa a correr nos crimes mencionados quando a vítima completa dezoito anos. Cuida-se de regra protetiva da criança e do adolescente, que, muitas vezes, por medo, vergonha ou falta de apoio familiar, se sentem tolhidos em revelar a ocorrência do crime sexual. Assim, estende-se a oportunidade de agir, com a consequente notícia do fato criminoso, a período posterior ao da maioridade. Assim, suponhamos que determinada criança, contando com oito anos de idade, seja molestada sexualmente por um parente, este um adulto de dezoito anos, não revelando o fato aos pais, por vergonha. Caracterizado o crime de estupro de vulnerável, percebemos que o prazo da prescrição da pretensão punitiva pela pena em abstrato é fixado em vinte anos. No entanto, como o autor possui idade entre dezoito e vinte e um anos, o prazo é reduzido da metade (dez anos). Ao completar dezoito anos de idade, a vítima, ora mais segura, decide por narrar o crime. Adotada a consumação do delito como termo inicial, como previa originalmente o artigo 111 do CP, constatar-se-ia sua prescrição. Contudo, pela nova regra, apenas na data do aniversário de dezoito anos da vítima o prazo teria início. Ou seja, o autor ainda poderia responder criminalmente por sua conduta.

O problema surge quando analisamos a parte final do dispositivo: “salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”. Caso haja propositura da ação contra o autor do crime antes de a vítima completar dezoito anos, a exceção prevista no inciso V deixa de valer. Nesse caso, já não se justifica a proteção intensificada ditada pelo dispositivo. Todavia, em sendo proposta a ação penal, qual será o termo inicial do prazo prescricional? Vamos tomar o crime do artigo 218-A como exemplo. As pessoas envolvidas são as mesmas do exemplo anterior, ou seja, a vítima é uma criança de oito anos de idade e o autor, pessoa com dezoito anos. A pena máxima de quatro anos, cominada como limite máximo ao citado delito, tem prazo prescricional de oito anos. Como o autor é menor de vinte e um anos, o prazo é reduzido para quatro anos. Ao completar quatorze anos, a vítima revela o ocorrido e o fato é levado ao conhecimento do Ministério Público, que oferece denúncia contra o autor. Dias depois, a denúncia é recebida. Nesse caso, quando se considera iniciado o curso do prazo prescricional? São três as orientações possíveis: (a) com a consumação do crime; (b) com a propositura da ação pelo Ministério Público; e (c) com o recebimento da denúncia pelo Magistrado. Filiamo-nos à segunda posição. A data da consumação do crime tem um embasamento teórico razoável, fundado na negação à exceção. Ora, se o início do prazo prescricional aos dezoito anos completados pela vítima é uma exceção à regra geral, sua negação gera o restabelecimento da regra. Essa posição, no entanto, tem um problema prático, que ilustraremos com base no exemplo dado: se o Ministério Público denunciasse o autor do crime do artigo 218-A tão logo cientificado pela vítima, o crime já estaria prescrito. Isso porque o prazo estaria em curso desde a data da consumação do crime, ou seja, seis anos antes. Por conseguinte, teria que esperar, o Ministério Público, para oferecer a ação penal somente depois que a vítima completasse dezoito anos, garantindo a inexistência da extinção da punibilidade, o que soa absurdo. Todavia, cremos que essa posição não deve prosperar. Isso porque a parte final do inciso V não é negativa total da exceção, mas sim estabelece outra: o início do prazo prescricional a partir da propositura da ação penal. Não verificamos pertinência também na terceira posição, que faz uma analogia com o disposto no artigo 117, I, do CP. Não temos, no artigo 111, V, uma causa interruptiva da prescrição, não havendo qualquer problema em o legislador estabelecer hipóteses diferentes de incidência nos dois dispositivos. Parece-nos, ao contrário, que o novo inciso é bem claro em sua redação, sendo certo que a interpretação literal parece a mais plausível.

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[*] Evidentemente, tratamos aqui apenas das situações previstas no artigo 111 do CP. Deixamos propositalmente de abordar casos tratados unicamente pela doutrina e jurisprudência (crimes habituais, por exemplo) ou versados em leis especiais.