sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Considerações jurídico-penais sobre notícias de O Globo de domingo (31/08/2014)

1- INJÚRIA POR PRECONCEITO E SUBSIDIARIEDADE


Incompatibilidade de gênios. Essa é minha relação com Renato Maurício Prado. Talvez eu seja chato, talvez ele o seja. Mas tenho consciência de minha extrema má-vontade com sua coluna. Contudo, neste domingo ele acertou em cheio, ao tratar das manifestações racistas ocorridas em jogo do Grêmio. Sinteticamente, o colunista, após repudiar o ocorrido, se mostra incomodado com a agressividade dos comentários sobre o caso nas redes sociais. Tem ele absoluta razão. Fica claro que a resposta a prolações odiosas é o incremento do ódio. E isso nos leva a refletir sobre a utópica intervenção penal mínima. 

Diz-se que o Direito Penal é subsidiário porquanto encerre a mais drástica das formas de controle social, uma vez que nenhuma outra apresenta tão intensas repercussões à esfera de liberdades individuais. A assertiva, contudo, vem perdendo força ante à realidade. No caso em apreço, a jovem flagrada ofendendo um jogador, se levada a Juízo, sujeitar-se-ia a uma pena privativa de liberdade de um a três anos de reclusão e multa. Ou seja, pela pena mínima seria teoricamente possível a suspensão condicional do processo. Superada a suspensão, ainda que condenada, a autora certamente escaparia à prisão, substituída por pena restritiva de direitos. Não se deve perder de vista, também, que a infração penal foi multitudinária (se é que a autora é tão preconceituosa como apregoado, parecendo mais que apenas "entrou na onda", embora de forma lamentável, para desestabilizar o jogador rival). 

Vejamos agora as consequências por ela já suportadas: execração pública; apedrejamento de sua casa; demissão do trabalho. Consequências cumulativas mais severas do que as possivelmente advindas da seara penal, algumas das quais, inclusive, por seu caráter infamante, seriam consideradas inconstitucionais se erigidas à categoria de penas. Foi a autora eleita para que a sociedade, contra ela vociferando, expie seus próprios preconceitos e, uma vez saciada, continue encobrindo situações de preconceito sensivelmente mais graves. Merece ela punição por seu arroubo racista? Sem dúvida, mas não pela sanha do justiçamento social informatizado e populista (ao qual se seguem, no mais das vezes, os populismos policial, ministerial e judicial). As punições sociais informais, diga-se, roubaram o lugar do Direito Penal na escala de dramaticidade sancionatória, ao menos nesse caso. Ademais, outra vez se percebe a falha do ramo da ciência jurídica em atingir uma de suas finalidades, qual seja, a de prevenir a vingança privada.


2- A INCRIMINAÇÃO DA BIGAMIA CONSENTIDA É PENALMENTE JUSTIFICÁVEL?


No Estado de Utah (EUA), conhecido pela grande concentração de mórmons, especialmente em Salt Lake City, a Justiça decidiu que a coabitação poligâmica é legal, a despeito das leis estaduais sobre o tema. Apenas o casamento entre mais de duas pessoas continua proibido. Dessa forma, atendeu-se ao pleito de certa corrente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias - uma dissidência, é verdade -, cujos integrantes mantêm o dogma do casamento plural, tal como preconizado por Joseph Smith, fundador da seita.

Em terras brasileiras, igualmente, a manutenção simultânea de dois ou mais vínculos matrimoniais importa crime (de bigamia), embora a coabitação seja penalmente admitida. Abstraindo as questões religiosas incidentes sobre o tema, questiona-se: se todos os envolvidos estão de comum acordo - isto é, se ninguém é enganado - se justifica a incriminação da bigamia?

A resposta não pode escapar à análise da objetividade jurídica do delito. Consoante PIERANGELI, "a tutela jurídica recai sobre a legalidade do casamento, ou, na expressão de Noronha, 'com a punição da bigamia o Código tutela a ordem jurídica matrimonial que se assenta no casamento monogâmico', que é a regra entre os países em que vigora a civilização cristã." Prossegue o autor: "O bem juridicamente protegido, portanto, encontra-se regulado no Código Civil (Livro IV, Título I, subtítulo I), com especial destaque para os impedimentos matrimoniais (art. 1.521). Podemos, pois, concluir que a tutela jurídica se faz sobre a organização familiar e, muito especialmente, sobre a ordem jurídica matrimonial. Como ensina Manzini, 'o objeto da tutela jurídico-penal é o interesse social em garantir os bens jurídicos bons costumes e ordem familiar, particularmente o instituto da monogamia.'" [1] 

Ressaltemos algumas das expressões utilizadas: monogamia; civilização cristã; bons costumes; ordem familiar.  Ou seja, invariavelmente a incriminação recai sobre objetos que não deveriam (ou, mesmo, não poderiam) ser penalmente tutelados. Afinal, por que a monogamia merece a proteção estatal? Obviamente, temos aqui um dogma social impregnado por religiosidade, de modo que "casamento monogâmico" e "civilização cristã" são termos que devem ser lidos em conjunto. Isso significa que, em boa parte, a objetividade jurídica da bigamia é inspirada por uma doutrina religiosa, que, embora professada pela maioria da sociedade e considerada como um parâmetro de moralidade (e aqui já incluímos também os mencionados "bons costumes"), vai de encontro ao princípio da ofensividade. Nesse mesmo sentido se pronuncia GIOVANE SANTIN: "É notório que o tema envolve questões culturais, morais e religiosas, razão pela qual entendemos que nos crimes contra a família previstos no Código Penal Brasileiro há uma excessiva invasão do Estado no âmbito familiar, o que pode gerar sérias consequências sociais e político criminais, além de violar o princípio da secularização." [2] A liberdade de crença e religião, estabelecida no artigo 5º, VI, da CF, fixa não apenas que ninguém pode ser forçado a contrariar sua crença religiosa, mas também que o Estado não pode prescrever determinadas crenças ou proscrever outras. Como bem assinala GEORGE MARMELSTEIN, "não são apenas os grupos religiosos tradicionais que gozam de proteção, mas até mesmo os mais heterodoxos." [3] 

Assim, por si só a proibição aos matrimônios plurais é questionável, especificamente quando grupos religiosos adotam a postura como parte de sua crença, uma vez que, sendo os vínculos conhecidos e aceitos por todos os envolvidos, não se percebe qual seria o temido grau de afetação social da prática, a ponto de restringir um direito fundamental. Se tivermos em mente, ainda, que o direito penal não pode se prestar à salvaguarda de ideologias, ou mesmo criminalizar modos de vida, cristalino fica o anacronismo da incriminação. Resta, por conseguinte, a análise da "organização familiar" como bem jurídico a ser tutelado, uma vez que a Constituição Federal informa gozar a família de especial proteção (artigo 226). Ora, ainda que a bigamia consentida pelos envolvidos possa afetar a família, tal como definida pelo Estado - o que cremos razoável apenas quando a conduta é fraudulenta -, o Direito Civil pode perfeitamente cuidar do tema, em homenagem à subsidiariedade penal.[4] Resumidamente, fica claro que os "Crimes contra o Casamento" imprescindem de revisão legislativa.


3- APROPRIAÇÃO DE COISA ACHADA E ERRO DE PROIBIÇÃO


A Revista O Globo trouxe interessante matéria de capa, intitulada "Fé no Mar", sobre caçadores de tesouros, verdadeiros garimpeiros dos mares cariocas, os quais se dedicam a encontrar bens perdidos por incautos nas praias, com consequente apropriação e revenda do material arrecadado. Outrora havia lido algo semelhante sobre garimpeiros das areias. Na época, reservei a reportagem para comentários futuros, mas, como invariavelmente ocorre, até hoje não sei onde a coloquei. De toda sorte, em ambos os casos os textos eram sobre aspectos curiosos da prática e tinham um tom mais elogioso do que recriminador. Contudo, a conduta é tipificada como crime, previsto no artigo 169, p. único, II, do Código Penal. Inquestionável a pertinência da opção legislativa quando identificável o proprietário da coisa perdida, impossibilitado de reaver seu patrimônio porque a ambição superou o altruísmo da devolução. No entanto, beira o ridículo quando impossível a identificação do dono do bem. 

Felizmente, é razoável o afastamento do caráter criminoso da conduta por erro de proibição. Acerca do assunto, já me manifestei no livro "Crimes Contra o Patrimônio" (Editora Freitas Bastos): "Interessante salientar que a apropriação de coisa achada é um excelente exemplo de caracterização possível do erro de proibição. A lei penal, por presunção inafastável, é do conhecimento de todos, a ninguém sendo permitido alegar a ignorância como escusa para seu comportamento (artigo 21, 1ª parte, CP). Entretanto, sabendo que o senso comum, em muitos casos, afasta a consciência sobre a ilicitude de um fato típico, o legislador houve por bem normatizar o erro de proibição, consistente em uma falsa representação da realidade, não na ignorância. Humberto Fernandes de Moura escreveu sobre o tema,  traçando um paralelo com o ditado popular 'achado não é roubado'. Em sua argumentação, o jurista traz à baila a teoria da representação social, pela qual certos 'saberes populares' e o senso comum servem de base para a interpretação e a construção do real. As representações sociais acabam por integrar os chamados universos consensuais, em que, aliadas às práticas costumeiras, se contrapõem aos universos reificados, berço das ciências e que nem sempre encontram projeção sobre o senso comum. É certo que a tipificação de condutas ingressa, desde logo, em um universo reificado, mas somente a sua divulgação pode fazer com que sejam reconhecidas como delituosas pela coletividade, o que ocorre em crimes corriqueiros, como o roubo ou o estupro. Em outros casos, a ciência coletiva da incriminação de certa conduta é tão restrita que as práticas usuais levam o indivíduo a crer que sua prática é tolerada pelo direito. Suponhamos o seguinte: uma pessoa, ao caminhar pela rua, vê, perdido, um cordão de ouro, sem qualquer característica que permita a identificação de seu proprietário. É de se esperar que esta pessoa leve a coisa achada para alguma autoridade pública? E em se tratando de uma nota de dinheiro? Infere-se como possível, nas hipóteses, o erro de proibição, que não ocorreria, v. g., no encontro de uma carteira contendo dinheiro e os documentos de seu proprietário, pois, nesse caso, a ética social recomenda a sua imediata restituição." [5] HANS WELZEL assim se pronunciava: "Objeto do juízo de reprovabilidade da culpabilidade é a resolução de vontade antijurídica; esta é reprovável ao autor na medida em que podia ter consciência da antijuridicidade de sua ação e em que essa consciência podia converter-se num contramotivo determinante dos fins." [6] O que só se opera, por óbvio, dentro da "capacidade de conhecimento ético-social".[7] 

Assim, podem os garimpeiros continuar despertando a curiosidade de reportagens sazonais, sem receio de se verem punidos por infrações obscuras.

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[1] PERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte especial. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v. 2. p.541.
[2] SANTIN, Giovane. Curso de Direito Penal: parte especial. Coord. Paulo Queiroz. Salvador: JusPodivm, 2013. v. 2. p. 597.
[3] MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 107.
[4] Nesse sentido, Giovane Santin. Op. cit., p. 598.
[5] GILABERTE, Bruno. Crimes contra o Patrimônio. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
[6] WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-Penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 123.
[7] IDEM, ibidem, p. 118.