quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Carros incendiados, trabalho incessante e pedido de desculpas aos alunos

Peço perdão aos meus alunos por ainda não ter postado o gabarito dos cadernos de exercícios. Como muitos já sabem, passei 44 horas acordado por conta dos ataques coordenados de traficantes no RJ. Felizmente, a ação policial começa a mostrar resultados e eu fico feliz em participar disso (os quatro primeiros bandidos presos foram autuados por mim, um dos quais preso em casa por uma equipe da 12a DP, na qual sou lotado). Ou seja, são circunstâncias extravagantes que, creio eu, justificam o atraso.

Aproveitando o espaço, gostaria de comentar a surpresa que tive ao constatar que comentários na internet e nos jornais impressos criticam a instalação das UPPs, creditando a elas a responsabilidade pelas incursões criminosas. É evidente que haveria reação dos bandidos, tolhidos em seus negócios outrora extramamente lucrativos. Todavia, mantê-los encastelados nas favelas seria relegar a população carente a um domínio tirânico dos traficantes e apenas adiar o inevitável confronto, quando os delinquentes se sentiriam suficientemente fortalecidos para tomarem as ruas. Assim, afigura-se como extremamente preconceituosa e de uma boçalidade absoluta a afirmação de que as favelas não deveriam ser pacificadas, mantendo-se os bandidos afastados do "asfalto".

De resto, cabe apenas a constatação de que as emissoras de televisão continuam apelando para opiniões óbvias dos policiólogos de sempre, os quais invariavelmente se baseiam em estatísticas falaciosas e mal-interpretadas para suas previsíveis constatações. Assim, arrumam uma bolsa como pesquisadores para monografias inócuas.

Abraços a todos.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

HC e "direito à fuga", na visão canhestra do STF

Sou assíduo leitor do blog "Nova Criminologia", editado pelo prof. Lélio Braga Calhau, a quem tive o prazer de conhecer em um seminário sobre criminologia na Emerj, constatando não apenas seu imenso saber jurídico, mas também uma simpatia ímpar. Nessas incursões ao blog, deparei-me com um artigo do Procurador da República Vladimir Aras, que eu gostaria de ter escrito. Assim, tomo a liberdade de reproduzi-lo:


"O Direito de Fugir e o Mundo da Lua

Para o ministro Dias Toffoli, o mais novo entre os juízes do STF, em certas situações, o réu tem“direito de fugir”. Este reconhecimento consta de decisão da 1ª Turma, em 17/ago/2010, por ocasião do julgamento do HC 101.981/SP. O ministro Lewandowski ficou vencido.

O réu C.R.S. fora preso em 24/abr/2008. A 5ª Turma do STJ manteve a prisão, por considerá-la legítima (HC 136.090/SP, relator Jorge Mussi). No STF, alegou-se excesso de prazo, o que foi reconhecido pelo colegiado, embora o réu, com sua fuga, evidentemente tenha atrasado o andamento do processo. Mas o min. Toffoli foi além: Veja:

HC N. 101.981-SP
RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI
EMENTA: Habeas corpus. Constitucional. Processual penal. Excesso de prazo. Superveniência de sentença de pronúncia. Prisão mantida por novo fundamento. Novo título prisional. Habeas corpus prejudicado. Decreto fundado na gravidade abstrata do delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Inadmissibilidade. Fuga posterior do réu do distrito da culpa. Fato irrelevante. Precedentes. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido de ofício.
1. A superveniência de sentença de pronúncia com novo fundamento para a manutenção da prisão cautelar constitui novo título prisional, portanto, diverso da prisão preventiva. Prejuízo da presente impetração.
2. É ilegal o decreto de prisão preventiva que se funda na gravidade abstrata do delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Ademais, em situações excepcionalíssimas, é legitima a fuga do réu para impedir prisão preventiva que considere ilegal.
3. Habeas corpus prejudicado. Ordem concedida de ofício.

Isto é que é ampla defesa! Para o ministro Toffoli, agora é o réu quem julga as razões do juiz. A mensagem é: se o acusado achar que o juiz mandou prendê-lo ilegalmente, pode fugir. E, para esta avaliação jurídica, o réu nem precisa cursar Direito ou fazer exame de Ordem. Vale o achismo “desinteressado” do próprio réu.

A decisão cita um precedente famoso, que foi relatado pelo ministro Marco Aurélio em 2005:

PRISÃO PREVENTIVA – EXCESSO DE PRAZO – FUGA DO ACUSADO. O simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo” (RHC n. 84.851/BA, 1ª Turma, rel. min. Marco Aurélio, j. 20/5/2005).

Neste RHC 84.851/BA, o crime era um latrocínio, ocorrido na cidade de Itaberaba/BA. A vítima deixou viúva e três filhos. O réu L.P.S. ficara foragido de jul/99 ao mês de jan/2003. Ao ser preso, L. P. S. confessou o crime em juízo. Mesmo assim levou a melhor.

Com todo o respeito ao STF, isto pode ser chamado de hipergarantismo, ou garantismo à brasileira. Se a fuga é um “direito natural”, qualquer ordem de prisão é ilegal e qualquer condenação à prisão é ilegítima. A prevalecer esse raciocínio, todos os presos têm de ser soltos. Cabe ao Estado garantir-lhes o direito de liberdade imediatamente.

Vontade de fugir é uma coisa; direito de fugir é outra! Quem está preso quer sair. Mas se a lei admite a custódia preventiva quando presente a necessidade de garantir a aplicação da lei penal (art. 312, CPP), é porque não há direito algum de evasão.

Embora existam muitas prisões desnecessárias e abusivas e vários estabelecimentos prisionais “funcionem” em condições terríveis (este é outro assunto), pergunto: qual réu na face da Terra admitirá que sua prisão foi justamente decretada? E qual não invocaria esse sacrossanto “direito” de fuga. Será que cabe HC para garanti-lo?

Lembro um caso em que um habeas corpus foi imediatamente sucedido por uma fuga. Em 14/jul/2000, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar no HC 80.288/RJ a Salvatore Cacciola, banqueiro acusado de crimes contra o SFN. Dias depois, conforme temiam o Ministério Público e os tribunais inferiores, Cacciola fugiu para a Itália, de onde é nacional. De lá não pôde ser extraditado, por falta de reciprocidade. Só retornou ao Brasil em 2008 quando foi preso em Mônaco e entregue ao nosso País.

Voltando ao tema… No caso relatado por Dias Toffoli em ago/2010 (HC 101.981/SP) tratava-se de cidadão acusado de homicídio duplamente qualificado (art. 121, §2º, I e IV, CP). O crime ocorreu em Sorocaba em jul/2006 e o imputado fugiu para não ser preso, o que gerou a suspensão do processo e o “excesso de prazo”. Ainda assim, a 1ª Turma do STF deu-lhe razão.

Viva o réu, pois a vítima está morta! Seus familiares poderiam argumentar, parafraseando o ministro Marco Aurélio: a vingança também “é um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica”

Diante do homicídio, o mais grave de todos os atos “discrepantes da ordem jurídica”, valeria a regra de talião: “olho por olho, dente por dente”? É para evitar a barbárie e a vendetta que o direito penal e a Justiça criminal existem.

De um lado: por que há tantos réus presos sem necessidade? Do outro: porque há tanta ânsia por Justiça na sociedade, a ponto de em algumas localidades prevalecer não a Lei de Gerson, mas a Lei de Lynch, com linchamentos sumários de autores de crimes violentos? Há que se achar um jeito de harmonizar os direitos processuais do réu e os direitos da sociedade à segurança e à integridade de outros tantos direitos inscritos, para todos, no art. 5º da Constituição. Como está não há como continuar: é o Brasil que está atrás das grades, ao passo que criminosos violentos estão soltos e à espreita de novas vítimas.

Enquanto este dia não vem, quem me consegue uma astronave? Pois quero “dar um rolé nas nuvens” ou exercer o meu direito de fugir para o mundo da Lua."

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Pai, polícia

O texto a seguir foi extraído da revista Piauí (a autora é Talita Virgínia). Não reflete o meu caso, mas me fez pensar bastante, até porque a paternidade é recente em minha vida. Ei-lo:

"Durante anos, tive medo do meu pai. Usava minha mãe como intermediária para falar com ele, para pedir alguma coisa. O curioso é que meu pai é um sujeito tranquilo, gosta de bicho, de natureza e é muito religioso. O trabalho dele é que é violento. Por isso, o associei à farda, à arma. Eu tinha medo do meu pai fardado.

Talvez o jeito de ser dele e o seu temperamento expliquem por que depois de trinta anos de serviço na Polícia Militar, tenha se aposentado como um simples soldado. Meu pai não pôde estudar quando era moço. Como não se saía bem nos testes, e nunca teve uma rede de conhecidos dentro da polícia, não conseguiu promoções. Chegou a fazer parte da Rota, a tropa de choque, que dava prestígio e não dinheiro. Mas ficou pouco, não se adaptou. A Rota é violenta, e quem já está nela faz de tudo para que os aspirantes desistam. O filme Tropa de Elite retrata bem isso.

Violência me assusta, mas a morte não me impressiona. Ver gente morta não é nada de extraordinário nos bairros onde moramos, e o fato de meu pai ser da polícia teve pouco a ver com isso. O Parque Pirajussara, perto de Embu, onde minha família mora atualmente, é um lugar perigoso. Uma vez, assassinaram um homem bem na nossa porta. Estávamos em casa e escutamos tudo, os berros, a correria, os tiros. Um policial deve prestar socorro sempre, mesmo quando não está em serviço. E meu pai tentou acudir o baleado, chamou a ambulância, mas não deu tempo. O tiro pegou bem no meio do peito e o homem morreu ali na nossa calçada.

Violência com o meu pai só vi uma vez. Eu devia ter uns 6 anos. Entrei no banheiro, ele estava lá, segurando a barriga, e vi o sangue escorrendo por entre os dedos. Minha mãe me mandou ficar no quarto, quietinha, com o meu irmão Felipe, que tinha 2 anos. Meu pai estava à paisana quando tomou esse tiro. Como a ambulância demorava muito a chegar, ele foi para o pronto-socorro dirigindo, com a minha mãe. Nesse dia eu tive medo.

Já estive envolvida em tiroteio, mas, novamente, o fator determinante foi a geografia, e não a profissão do meu pai. Ele estava saindo de casa comigo no colo quando um homem, perseguido por outros três armados, aproveitou a porta aberta e correu para dentro da nossa casa. Os perseguidores vieram atrás atirando. E meu pai, que nunca anda desarmado, trocou tiros com eles para nos defender. Nessa época, morávamos no Jardim Macedônia, perto do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, outro bairro bastante violento.

Já fomos obrigados a mudar de casa, de madrugada, para escapar de ameaças. Houve uma briga em um bar perto de casa e meu pai teve de se envolver, e acabou acertando um bandido. Como todos do bairro sabiam onde nós morávamos, os bandidos prometeram matar a nossa família em represália. Durante o resto desse ano meu irmão e eu não voltamos para a escola.

Só depois de adulta, quando o pcc parou São Paulo, percebi o risco real que meu pai correu. Ele sempre quis ser policial, sempre trabalhou na rua, sempre soube dos riscos. E não se arrepende. Desde que se aposentou, todos os anos faz os 168 quilômetros até Aparecida do Norte a pé para pagar uma promessa. Ele pediu para conseguir se aposentar com todos da família vivos."

Relações institucionais conflituosas: a arrogância não pode prevalecer sobre a harmonia

Recentemente, conversando com um amigo também Delegado, soube de uma situação que, embora seja relativamente corriqueira, ainda me causa espanto. Refiro-me à ameaça de autuação de Autoridades Policiais pelo crime de prevaricação, em caso de descumprimento de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário. Não vou sequer me ater à questão da independência entre os órgãos envolvidos (não há subserviência da Polícia Civil a eles), mas sim à questão técnica: para a existência de prevaricação, se faz necessária a intenção de atender a um sentimento ou interesse pessoal. Não que isso não possa existir. Mas somente a situação concreta pode revelar esse elemento subjetivo especial. Discordâncias sobre a tipicidade de determinada conduta ou outros aspectos da ciência penal não permitem, por conseguinte, perfeita adequação da conduta ao preceituado no art. 319 do CP. No caso em apreço, tudo se torna ainda mais esdrúxulo, por conta de uma ameaça genérica de autuação (algo do tipo "todos os delegados que descumprirem determinada ordem serão presos por prevaricação"), o que, no mínimo, revela descortesia ímpar para com uma instituição bicentenária. Mas não vou me prolongar, até porque a resposta dada por esse amigo ao ofício encaminhado é precisa na análise da controvérsia, merecendo minha integral concordância. Transcrevo-a (nomes foram suprimidos para evitar constrangimentos):

Venho atender à solicitação de informações do Diretor do DGPC no que tange aos fatos narrados em ata de assentada realizada no dia YY de agosto, na Projeção do VIII Juizado Especial da Violência Doméstica e Familiar contra a mulher e Especial Criminal – Estádio Maracanã.

Em síntese, naquele dia fora apresentada pela Polícia Militar a esta Autoridade Policial ocorrência envolvendo o nacional A. F. A., o qual fora detido por policiais militares em razão de posse de aparelho emissor de feixe de luz semelhante a um laser. Consta no registro de ocorrência, lavrado com base nas declarações dos policiais condutores, que o referido indivíduo estaria no meio da torcida do Fluminense apontando aquele feixe de luz para a torcida do São Paulo.

Analisada a conduta do conduzido com base nestes fatos e considerando a enorme distância entre as torcidas adversárias nas arquibancadas do Maracanã, bem como a ausência de potencial nocivo de uma luz projetada sobre outra torcida à tamanha distância, esta Autoridade Policial decidiu - como não poderia deixar de ser - por reconhecer a atipicidade penal da conduta do citado cidadão.

Porém, conhecedor da legislação aplicável a eventos esportivos, especificamente o Estatuto do Torcedor – esta Autoridade lavrou o registro de ocorrência e apreendeu o aparelho em razão da existência de norma legal que classificou como infração ADMINISTRATIVA a posse de aparelhos emissores de feixe de luz.

A verificação desta infração acarreta na proibição de entrada ou retirada do torcedor do estádio.

Diz o citado preceito legal:


CAPÍTULO IV

DA SEGURANÇA DO TORCEDOR PARTÍCIPE DO EVENTO ESPORTIVO

Art. 13. O torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos antes, durante e após a realização das partidas.

Parágrafo único. Será assegurado acessibilidade ao torcedor portador de deficiência ou com mobilidade reduzida.

Art. 13-A. São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

....

VII - não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

...

Parágrafo único. O não cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará a impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o caso, o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

Crê desnecessária neste momento explanação teórica acerca da natureza administrativa do dispositivo legal acima analisado, quando uma simples análise da lei revela que a tal conduta não foi previsto um preceito secundário punitivo, bem como tal norma intencionalmente não foi elencada no Capítulo XI-A (artigos 41-B a 41-G) do atualizado Estatuto do Torcedor.

Prosseguindo, impõe-se destacar que foi o registro de ocorrência desta infração administrativa foi lavrado então sob o correto título de “fato atípico” apenas para viabilizar a apreensão formal do aparelho emissor de luz.

Imediatamente o nacional conduzido pelos policiais militares foi colocado à disposição destes para cumprimento das sanções administrativas previstas no Estatuto do Torcedor, uma vez que a conduta do mesmo era irrelevante à luz do Direito Penal.

Os autos do registro de ocorrência foram então encaminhados ao MP e MM. Juízo que naquele momento compunham o “posto avançado” por mera observância de praxe específica, uma vez que em sede de Delegacia de Polícia Judiciária, qualquer fato registrado e entendido como atípico por quem tem atribuição legal - o Delegado de Polícia – merece arquivamento imediato sem a necessidade de consulta ou “benção” do MP ou de qualquer órgão, quanto mais o Poder Judiciário, inerte por princípio constitucional elevado a garantia de direito fundamental.

Eis que chega a esta Autoridade Policial solicitação de informações provocada por remessa de ata de assentada referente ao caso acima descrito.

Nesta ata de assentada se encontram fundamentos e alegações tanto do Ilmo. Promotor e do MM. Juiz sobre o entendimento e atuação desta Autoridade Policial os quais, em minha modestíssima opinião, estão um pouco equivocados quanto aos seus próprios poderes e atribuições, quanto aos do Delegado de Polícia em atuação nos “postos avançados dos Juizados Especiais”.

Destacam-se os seguintes trechos:

1) O Promotor em sua manifestação afirma que a conduta do nacional A. F. Ar. se caracteriza como infração de menor potencial ofensivo, “idealizada nos preceitos normativos dos art. 13-A da Lei 10671/03 e art. 40 do DL 3688/41”.

Mais adiante o órgão do MP considera o entendimento e atuação da Autoridade Policial como “indevidos”, alegando que ficou impossibilitado de realizar a audiência e oferecer ação penal em razão da dispensa do nacional autor da conduta.

Finaliza o membro do Parquet asseverando que “comportamentos como esses desnaturam a própria presença do MP e da Autoridade Judiciária, pois a dispensa indevida de qualquer pessoa obsta a realização de qualquer ato no posto avançado.”

2) O MM. Juiz em suas manifestações revelou interpretação, a meu ver, violadora e – agora sim – teratológica de norma da lei 9099/95. Afirmou o magistrado que:

“Não cabe a Autoridade Policial, presente o MP e Judiciário, em regime de plantão, fazer juízo de valor da ocorrência apresentada, uma vez que a lei 9099/95 é expressa em determinar a apresentação do autor do fato, tão logo registrado o termo circunstanciado à audiência preliminar (...).”

Em seguida, o MM. Juiz concluiu que o exercício de uma das atribuições do Delegado de Polícia por esta Autoridade Policial – a análise e tipificação de condutas – caracterizaria falta funcional grave (?!), a ser sindicada.

Ao final, após determinar a extração de peças dos autos para instrução de ofícios endereçados as mais importantes Autoridades do Estado, o magistrado encerra a assentada com um paradoxal “aviso” a todas as Autoridades Policiais de que atuações como a deste Delegado de Polícia – simples análise e tipificação de uma conduta- serão entendidas pelo MM. Juiz como a consumação do crime de prevaricação (artigo 319 do CP), a merecer repressão penal imediata, com uso de força policial (!?!?) se necessário.

Apesar de divergência de idéias ser sempre evento salutar e provocador de evoluções em todos os campo do conhecimento humano, no caso em tela não se trata de mera inconformidade do promotor com a tipificação dada por esta Autoridade Policial à conduta do nacional conduzido na posse de uma “caneta laser”. Porém, uma breve análise da conduta do nacional, descrita pelos policiais militares nos autos do registro de ocorrência, faz-se necessária.

Conforme explicado anteriormente, o artigo 13-A da lei 10671 – o qual define exatamente a conduta praticada pelo conduzido – não tem natureza de norma penal incriminadora, mas sim de norma que prevê conduta passível de sanção administrativa.

Ainda que se entendesse como o Ilmo. Promotor e combinasse o artigo 13-A da lei 10671/03 com o sugerido artigo 40 do Dec.-Lei 3688/41 – violando, s.m.j. o Princípio da Especialidade na tipificação de condutas, clara ainda a atipicidade da conduta descrita.

Diz o preceito do artigo 40 do Dec-lei 3688/41:

“ Art. 40. Provocar tumulto ou portar-se de modo inconveniente ou desrespeitoso, em solenidade ou ato oficial, em assembléia ou espetáculo público, se o fato não constitui infração penal mais grave;

Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

A conduta de A. F. A., o qual portava ou apontava um feixe de luz produzido por pequeno aparelho, para a torcida adversária localizada no lado oposto da arquibancada onde se encontrava, considerando as dimensões do maior estádio do mundo; não deve ser considerada inconveniente ou desrespeitosa (?!). Um pequeno feixe de luz partindo de uma arquibancada a outra oposta no estádio do Maracanã chegará ao outro lado sem potencial de “perturbar”, “desrespeitar” ou “ser inconveniente”. Quanto mais provocar um tumulto.

Se, por exagerada e – agora sim, teratológica – interpretação se considerar tal conduta formalmente típica à luz do artigo 40 do Dec-Lei 3688/41, forçosa é a conclusão que tal conduta é atípica em seu aspecto material, uma vez que o espetáculo e a paz pública (bens jurídicos tutelados pela norma penal incriminadora) em nenhum momento correram risco de violação ou ataque idôneo.

Porém, conforme se depreende da leitura da ata de assentada, a questão transcende e muito um conflito de interpretações quanto a tipificação de uma conduta.

Trataram as manifestações do Ilmo. Promotor e do MM. muito mais da questão dos limites e harmonização das atribuições dos órgãos executores das Instituições envolvidas.

O promotor em suas manifestações deixa claro que a o entendimento e atuação desta Autoridade Policial – correta e nos limites de suas atribuições constitucionais e legais – “impediu” que o MP executasse seu mister. Destacou também, com exagerada sensibilidade, que tal atuação da Autoridade Policial tornava sem sentido a presença do Ilmo. Promotor e do MM. Juízo no “posto avançado”.

O MM. Juiz deixa claro em sua manifestação uma nova regra processual penal quando afirma que o Delegado de Polícia não tem a atribuição de “fazer juízo de valor” da ocorrência quando na presença do MP e do Juiz.

Ora, temos um problema então. O exercício regular, correto e livre das atribuições do Delegado de Polícia - no caso representados pela análise, tipificação e adoção das medidas cabíveis em relação às condutas dos indivíduos conduzidos ao posto avançado do Jecrim nos estádios – não pode ser considerada espécie de “intromissão” ou ação “indevida”, muito menos mitigado em razão do simples local ou evento onde a Autoridade Policial está. Seus poderes emanam da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, e sua atribuição deve ser exercida de maneira uniforme em todas as ocasiões, seja em sede policial ou “posto avançado”.

Quanto a questão da irrelevância da presença do MP e Autoridade Judiciária quando do atuação livre do Delegado de Polícia, questão igualmente provocativa se impõe:

Qual a necessidade da Autoridade Policial nos “postos avançados” se o livre exercício de suas atribuições é encarado quase como um desafio aos órgãos do MP e do Poder Judiciário?

Uma pessoa que realiza conduta claramente atípica à luz das leis penais não deve ser limitada em seus direitos mais do que determina o ordenamento jurídico – no caso, o nacional conduzido sofreria apenas a sanção decorrente da infração administrativa que praticara.

No caso em tela qual a legalidade da detenção do nacional autor de conduta atípica à espera de uma audiência. Aplique-se a sanção administrativa que é a regular conseqüência de sua conduta. Qualquer outra limitação, punição ou cerceamento de seus diretos caracteriza crime de abuso de autoridade por parte de servidor público (Promotor, Juiz ou Delegado) que assim agir.

Neste momento, faz-se necessário ressaltar que tal problema nunca ocorrera antes entre esta Autoridade Policial nos vários plantões que cumpriu ao longo dos anos, acreditando que se trata de questão relacionada ao entendimento pessoal das partes envolvidas do que hipotético conflito entre as Instituições a que pertencem.

Em relação à sugestão do Magistrado de que a conduta desta Autoridade Policial deva ser objeto de sindicância, há que se admitir que o MM. Juízo está correto, uma vez que tal procedimento administrativo pode também apurar condutas meritórias visando o recebimento de elogios publicados em Boletim Interno e outras homenagens previstas em regulamento próprio.

Porém, no que tange ao “aviso” manifestado ao final da assentada, há que se enfrentar três questões:

A mais relevante se refere a real possibilidade da prática de abuso de autoridade por parte de servidor público que determine a detenção ou sanção não prevista legalmente ou em excesso em desfavor a cidadão autor de conduta mão tipificada em nenhuma norma penal incriminadora.

Em segundo lugar, o entendimento um tanto imaturo de que a análise e tipificação de condutas de indivíduos sejam fruto não da apurada técnica e notável saber jurídico dos Delegados de Polícia da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro – mas sim de um sentimento pessoal, a permitir a caracterização de um esdrúxulo crime de prevaricação.

O tipo penal previsto no artigo 319 do CP exige, como elementar do delito, a intenção de satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

O entendimento sobre a atipicidade do fato NÃO É, nem de longe, algo que possa ser comparado à intenção de satisfazer um interesse ou sentimento pessoal. Cuida-se, tão-somente, de uma posição jurídica, de um profissional que não é obrigado a comungar das mesmas opiniões esposadas por juízes e promotores.

Nessa esteira se pronuncia a jurisprudência:

“Para se caracterizar o crime de prevaricação, na hipótese em que o funcionário deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, para satisfazer sentimento pessoal, é necessário que a prova dos autos revele que o ato comissivo decorreu de afeição, ódio, contemplação, ou para promover interesse pessoal seu, como expressamente alude o Código Penal, ainda fonte de entendimento da Lei repressiva, em vigor. Se, ao contrário, a omissão decorreu de erro do funcionário, ou por dúvida quanto à interpretação da lei, ou de ordem de serviço, não se pode falar em prevaricação, para cuja prática se exige dolo específico” (TFR, DJU de 14/10/1982,
p. 10.363, Rel. Min. José Cândido).

Equiparar intencionalmente a analise e entendimento das Autoridades Policiais a uma satisfação de sentimento pessoal (ignorando ainda a necessidade de provar a existência de tal sentimento pessoal), visando fundamentar esdrúxula caracterização do delito de prevaricação indica uma tentativa de intromissão indevida do Judiciário nas atividades de outra Instituição da Administração Pública – A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.

Tal entendimento revela uma visão por parte do magistrado em questão da Autoridade Policial como órgão subalterno ao Juízo, um mero cumpridor de ordens; o que evidentemente não tem cabimento ou mínimo respaldo jurídico, sendo que são cargos de poderes distintos, inexistindo sombra de hierarquia administrativa, disciplinar ou de qualquer espécie entre tais servidores.

Ressalto que o caso em foco não se trata de questão institucional, uma vez que a maioria absoluta dos Juízes busca, quando surge uma controvérsia, no mínimo um diálogo com a Autoridade Policial e com os demais componentes do posto avançado do Jecrim. Esta sim, uma conduta profissionalmente madura.

Em terceiro lugar, tal entendimento do Magistrado ao afirmar que este Delegado de Polícia cometeu uma prevaricação provoca a seguinte questão:

Por qual motivo não o magistrado não ordenou a prisão em flagrante desta Autoridade Policial, já que todos estavam presentes no momento da recusa? Se o Magistrado entende que o descumprimento de uma atividade de ofício deve sempre ser encarado como prevaricação, obrigatória a conclusão de que o MM. Juízo ele também prevaricou.

Tal paradoxo intrínseco ao entendimento manifestado pelo magistrado é exatamente o elemento que elimina qualquer sustentação de sua manifestação. O magistrado, no caso em tela, não tem base para defender, de plano, sem qualquer outra demonstração fática, a existência da prevaricação.

Neste sentido, o colendo Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, sem qualquer demonstração do interesse ou sentimento satisfeito, não há que se falar em prevaricação:

“Processual penal. Habeas-corpus. Delegado de polícia. Prevaricação. Inépcia da denuncia. Trancamento da ação. ‘sentimento pessoal’. Recurso ordinário conhecido e provido. I - o paciente, que é delegado de polícia, foi denunciado por prevaricação porque se omitiu na apuração de diversas ocorrências e instaurações de inquéritos. II - a denúncia que não descreve a contento. O fato criminoso de modo a ensejar a defesa é inepta. O caso, em si, poderia acarretar uma correção administrativa, nunca uma ação penal. Não se descreveu em que consistia o ‘interesse ou sentimento pessoal’ do paciente. III - recurso ordinario conhecido e provido” (RHC 3984/GO, Sexta Turma).

Assim, para que os órgãos encarregados da apuração de delitos e de sua instrução processual possam trabalhar em harmonia, é necessário que sejam afastados todos os traços de autoritarismo, ainda que fundados na preservação da respeitabilidade judicial, lembrando sempre que a atividade de segurança pública atualmente deve ser encarada como um conjunto de ações do Estado de modo a garantir os direitos fundamentais do cidadãos e sua coletividade, em substituição ao conceito antiquado - porém de mais fácil compreensão - de simples “garantia e manutenção da ordem pública”.


Desde já, coloco-me à disposição para qualquer outro esclarecimento.