Sempre achei que não haveria grandes divergências no que tange à capitulação do "golpe do falso sequestro", em que o sujeito ativo - na maior parte dos casos pessoa cumprindo pena privativa de liberdade - simula estar restringindo a liberdade de locomoção de outrem, telefonando para um número aleatório, ocasião em que se vale de ardil para convencer o interlocutor sobre a veracidade do sequestro. Em seguida, o sujeito ativo exige vantagem financeira indevida, normalmente consistente no depósito de quantias em contas-correntes de "laranjas", em troca da "libertação" do ente querido da pessoa constrangida.
Vislumbro na hipótese, sem dificuldades, crime de extorsão, uma vez que o ardil se presta a uma imposição, ou seja, é parte integrante da grave ameaça praticada para constranger a vítima. Nunca imaginei que veria de forma tão recorrente a conduta sendo tipificada como estelionato: na Delegacia recebo corriqueiramente procedimentos lavrados em outros Estados (principalmente São Paulo, mas escrevo por ocasião de uma investigação oriunda de Rondônia), tipificando o fato no crime fraudulento e, como o depósito foi realizado em contas no Rio de Janeiro, teoricamente se estabelece aqui a atribuição para prosseguir no feito, dado o local da consumação. Nada mais equivocado! Ver na conduta crime de estelionato é o mesmo que tipificar no artigo 171 do CP roubo com uso de simulacro de arma de fogo. E, o que mais me causa perplexidade, é perceber que a tipificação é atribuída pelo Delegado local, endossada pelo MP e reafirmada pelo Magistrado, assentindo com o declínio de atribuição para remessa.
Assim, elaborei um despacho padrão para esse tipo de transferência, que ora compartilho. Abraços a todos!
Cuida-se, o feito, de procedimento iniciado na XXXXXXª DP de Município X - SP, sob o título de estelionato, e remetido a esta DP com a anuência do Ministério Público e do Judiciário atuantes naquela comarca, sob o argumento de que o crime teria se consumado nesta circunscrição, fixando-se atribuição para prosseguimento.
Nos autos, consta termo de declarações firmado por S. R. S. S., ora denominada vítima, moradora de Município X, que narrou ter recebido uma ligação em sua residência, na qual o interlocutor afirmava estar com sua filha sequestrada. Após, valendo-se de grave ameaça, o interlocutor exigiu vantagem pecuniária em troca da libertação da sequestrada. A vítima, crendo na versão, demonstrou efetivo constrangimento, anuindo para com a exigência, razão pela qual se encaminhou a um caixa eletrônico e realizou transferência eletrônica de fundos, no valor de R$ 3.850,00, tendo como beneficiárias duas contas-correntes sediadas no Centro do Rio de Janeiro. Posteriormente, descobriu que a ameaça era fraudulenta, pois sua filha nunca esteve sequestrada, tratando-se de ardil para a consecução de vantagem indevida.
Todavia, com a devida vênia, cremos que tanto Polícia Civil, quanto Ministério Público e Judiciário paulistas se equivocaram na capitulação da conduta. Isso porque, apesar da indiscutível fraude, esta foi usada a título de constrangimento, o que configura crime de EXTORSÃO, não de estelionato. Nesse sentido já se pronunciou o STJ, verbis:
"PRISÃO PREVENTIVA. EXTORSAO E FORMAÇAO DE QUADRILHA. GOLPE DO 'FALSO SEQUESTRO'. PROVAS DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA DELITIVA. PRESENÇA. NEGATIVA DE AUTORIA. INVIABILIDADE DE EXAME NA VIA ELEITA. CIRCUNSTÂNCIAS DOS CRIMES. GRAVIDADE CONCRETA. NECESSIDADE DE INTERRUPÇAO DAS ATIVIDADES DELITIVAS. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. SEGREGAÇAO JUSTIFICADA E NECESSÁRIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NAO EVIDENCIADO. (...) 3. Não há falar em constrangimento ilegal quando a prisão preventiva está devidamente justificada na garantia da ordem pública, visando diminuir ou interromper a atuação dos integrantes de organização criminosa, composta por onze indivíduos, voltada especialmente à prática de delitos de extorsão, na forma de 'falso sequestro'." (HABEAS CORPUS Nº 243.296 – RJ, rel. Min. Jorge Mussi).
O crime de extorsão, ao contrário do estelionato, é classificado quase que unanimemente como crime FORMAL, consumando-se, por conseguinte, no local em que se deu o efetivo constrangimento, ou seja, onde a vítima praticou a conduta dela exigida, ainda que sem a consequente percepção da vantagem econômica pelo sujeito ativo. Sobre o tema, tivemos oportunidade de esposar a posição ora transcrita em livro: "O momento consumativo da extorsão não é tema pacífico no direito penal. Basicamente, há duas linhas de raciocínio se digladiando: a) a extorsão é crime formal (ou de consumação antecipada); b) a extorsão é crime material. Para os defensores do primeiro posicionamento, a consumação do delito se opera no momento em que, após o constrangimento, a vítima adota o comportamento exigido pelo agente, ainda que este não aufira a vantagem almejada. Por exemplo, se o lesado é obrigado pelo agente a digitar sua senha eletrônica em um terminal bancário, a fim de disponibilizar ao criminoso certa quantia depositada em sua conta, o crime se consumará quando o lesado tiver cumprido aquilo que dele se exige. Se efetivamente o dinheiro é entregue ao agente, a obtenção da vantagem econômica configurará mero exaurimento da conduta. Se a vítima se recusar a cumprir com a exigência, existirá tentativa criminosa. Todavia, se ela digita sua senha, mas, devido ao nervosismo com a situação, equivoca-se por três vezes, causando o bloqueio da conta, o crime restará aperfeiçoado, a despeito da não consecução da vantagem pelo sujeito ativo. Em suma, o momento consumativo não é contemporâneo ao emprego da violência ou da grave ameaça, tampouco à efetivação da vantagem indevida. Somente quando a vítima, constrangida, faz, tolera ou deixa de fazer alguma coisa, sucumbindo à exigência do sujeito ativo, teremos como aperfeiçoados todos os elementos objetivos do delito" (GILABERTE, Bruno. Crimes contra o Patrimônio. Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos, 2013. P. 113-114). Aliás, nessa esteira segue a Súmula 96 do STJ.
Especificamente sobre competência para julgamento no golpe do falso sequestro, também já se pronunciou o colendo STJ: "A quaestio juris consistiu em saber se a competência para apurar suposto crime de extorsão na modalidade de comunicação por telefone de falso sequestro com exigência de resgate por meio de depósito bancário seria o juízo do local onde a vítima teria sofrido a ameaça por telefone e depositado a quantia exigida ou aquele onde está situada a agência bancária da conta beneficiária do valor extorquido. Para a Min. Relatora, como a extorsão é delito formal, consuma-se no momento e no local em que ocorre o constrangimento para que se faça ou se deixe de fazer alguma coisa (Súm. n. 96-STJ). Assim, o local em que a vítima foi coagida a efetuar o depósito mediante ameaça por telefone é onde se consumou o delito. Por isso, aquele é o local em que será processado e julgado o feito independentemente da obtenção da vantagem indevida, ou seja, da efetivação do depósito ou do lugar onde se situa a agência da conta bancária beneficiada. Com esse entendimento, a Seção declarou competente o juízo suscitado. Precedentes citados: REsp 1.173.239-SP, DJe 22/11/2010; AgRg no Ag 1.079.292-RJ, DJe 8/2/2010, e CC 40.569-SP, DJ 5/4/2004" (Informativo nº 466, CC 115.006-RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/3/2011).
Pelo exposto, entendemos que a remessa do feito a esta DP foi indevida, já que falece atribuição à Polícia Civil do Rio de Janeiro. Assim, remeto os autos à Central de Inquéritos, sugerindo seja suscitado conflito de atribuição, a fim de que o feito seja finalmente conduzido a bom termo.
Professor, poderia discorrer um pouco sobre o princípio da consunção no caso em tela? O crime-fim de estelionato não absorveria o crime-meio de extorsão?
ResponderExcluirGrato pela aula.
Álvaro A. Siqueira
Sr tenho recebido diariamente ligação, vivo fixo, me indagando se tenho determinada moto, e me informam que tenho um boleto pendente. Claro dou risada sobre, contudo o que me incomoda são as ligações diarias, pergunto: seria possível chegarmos a essa quadrilha ?
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