quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Erro de tipo na Lei Antidrogas (Lei n. 11.343/06) e breves anotações sobre a ayahuasca

O vídeo a seguir apresenta um exemplo irretocável de erro de tipo: pés de maconha surgem em uma cidade do interior (possivelmente sementes foram transportadas por pássaros) e os moradores do local passam a usá-los para as mais diversas finalidades, desconhecendo se tratar de planta cujo cultivo é vedado por lei. Aliás, impressiona a rápida difisão da sabedoria popular, pois, mesmo diante de um vegetal desconhecido, os cidadãos logo descobrem várias de suas propriedades terapêuticas, como o combate ao enjoo. Só resta uma pergunta: por que não autorizar ao menos o uso medicinal da cannabis?



Em tempo, acredito que todos já saibam que o Governo Federal liberou o uso da ayahuasca, uma substância alucinógena, em rituais ligados ao Santo Daime e à seitas religiosas assemelhadas. Agiu corretamente, diga-se de passagem, dando efetivo cumprimento à Convenção de Viena, da qual o Brasil é signatário. Apesar de ser descrente em misticismos religiosos, considero a medida acertada, apesar das críticas tecidas por algumas revistas semanais, em especial a IstoÉ. Aqueles que desejarem aprofundamento no tema devem obrigatoriamente acessar a página do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP).

Abraços a todos.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Traduções estapafúrdias


Imagine se o filme Avatar tivesse o título "Aventura no Espaço"... você assistiria? Acompanharia a série televisiva House (uma de minhas preferidas) caso ela se chamasse "Um Médico do Barulho"? Sem dúvidas, o nome da produção é um fator determinante para seu sucesso comercial. Por isso, é aceitável que títulos originais sejam adaptados para se tornarem mais palatáveis ao público alvo. Entretanto, as atuais traduções feitas pelas distribuidoras brasileiras são de um mau-gosto incrível, afastando boa parte do encantamento pelo filme.

Antigamente, os títulos em português atiçavam a curiosidade dos cinéfilos em geral: One Flew Over the Cuckoo's Nest, por exemplo, virou "Um Estranho no Ninho", nome perfeitamente aceitável, até por sua pertinência; The Maltese Falcon passou a se chamar "Relíquia Macabra". Muitas vezes as traduções eram poéticas, como no caso de "Crepúsculo dos Deuses", cujo nome original é Sunset Boulevard. O mesmo não se vê nos exemplos mais recentes. O desenho animado "Está Chovendo Hamburguer" não é dos piores, mas por que não traduzir fielmente o nome em inglês (Cloudy With a Chance of Meatballs, ou seja, "Nublado, com Possibilidade de Almôndegas"), muito mais divertido e adequado ao roteiro?

Em verdade, minha raiva se dirige especificamente ao filme "Na Mira do Chefe". Ou melhor, à denominação em português do filme, que não guarda qualquer tipo de coerência com a estória. Trata-se de um título a la Sessão da Tarde, absolutamente ridículo. O filme, ao contrário, é excepcional. Chama-se, em inglês, In Bruges, uma vez que a ação se passa nessa cidade belga. Descobri-o na prateleira da videolocadora quase por acaso, uma vez que o nome não despertou meu interesse. Trata-se de uma comédia diferente, muitas vezes politicamente incorreta, mas muito divertida e surpreendente. Recomendo a todos.

Abraços.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Ato obsceno no carnaval: a lei pode ser distorcida para atender a uma finalidade pública legítima?


Sempre defendi o enxugamento do Código Penal (bem como a abolição da Lei das Contravenções Penais), pois ele contém várias incriminações absolutamente irrelevantes ou esdrúxulas (creio ser possível limitar o Código a não mais do que duzentos artigos). Causa-me grande irritação ser obrigado a investigar, por exemplo, injúrias proferidas em brigas de vizinhos (comportamento de reprovabilidade diminuta, que poderia ser alijado da seara penal) ou o crime curiosamente denominado de "outras fraudes" (art. 176 do CP, que se inclui na categoria das infrações esdrúxulas), embora este último, ao menos, não seja tão frequente quanto o primeiro.

O ato obsceno é um desses delitos que não merecia repousar no texto penal, por dois motivos: não me parece algo tão grave que mereça uma reprimenda de caráter criminal, podendo ser resolvido administrativamente; e pela absoluta indeterminação do conceito de obscenidade, sempre dependente de avaliações exageradamente subjetivas. Além disso, tenho certa aversão pela tutela jurídica dos "sentimentos" (Luis Greco, em excelente artigo, fala sobre o perigo de se sacrificar a função limitadora do conceito de bem jurídico nesses casos), embora por vezes ela me pareça legítima, como no caso dos crimes contra o respeito aos mortos (tutela-se o sentimento de respeito aos mortos). Enfim, não considero razoável punir-se as afetações de "sentimentos" de menor relevância, como o de pudor. No entanto, o art. 233, que cuida do ato obsceno, é largamente aplicado, sendo mais relevante nesse momento estabelecer seu alcance, relegando o debate sobre a constitucionalidade para oportunidade diversa.

Em minhas aulas na graduação, costumo defender que o conceito de obscenidade somente pode ser aferido em face ao caso concreto. Não há como se perquirir a obscenidade de um ato abstratamente considerado, pois fatores como local do ato, público a ele exposto e ocasião de sua prática influenciarão na análise. Por exemplo, um desfile de modelos vestindo lingerie é perfeitamente legal se praticado no local em que se realiza uma semana de moda, ao passo em que pode ganhar contornos obscenos se realizado diante de um templo religioso; da mesma forma, a nudez em praias naturistas não ofende o bem jurídico tutelado, mas é proibida em praias frequentadas pelo público em geral. Ainda sobre a nudez, se praticada durante a encenação de uma peça de Nelson Rodrigues não há que se falar de ato obsceno, pois o público já espera (ou ao menos deveria esperar) que ela ocorra (não há ofensa ao sentimento de pudor, portanto); entretanto, se a encenação se dirige a desavisados, na praça de uma conservadora cidade interiorana, a obscenidade pode ser reconhecida. Por fim, causa desconforto (não para mim) o desfile de uma mulher com os seios desnudos em via pública, mas a conduta é socialmente aprovada se essa rua for a Marquês de Sapucaí, por ocasião do carnaval.

Agora alcanço desejado ao começar a discorrer sobre o tema: a prisão dos "mijões" no carnaval do Rio de Janeiro. A micção em via pública, além de todos os fatores de análise acima delineados, ainda depende da exibição dos genitais para se enquadrar no art. 233 do CP. O "xixizinho" tímido, em que se procura esconder as "partes pudendas" (essa expressão é péssima!), é meramente uma porcaria e falta de educação, mas nunca crime. Entretanto, pretendo ir além: ainda que, durante um bloco carnavalesco, o folião coloque o seu pierrô para fora e urine às vistas de todos, não me parece possível a caracterização do ato obsceno. O carnaval é permissivo por natureza e tal ato, praticado nesse momento de desapego à moralidade sexual, não tem o condão de afetar o pudor público. Caso contrário, teremos que proibir as vinhetas do "Carnaval Globeleza" e as passistas das escolas de samba terão que se fantasiar de baianas. As reclamações sobre a micção em via pública, no mais das vezes, são direcionadas ao consequente mal-cheiro, não à falta de recato sexual daquele que se alivia. Portanto, o Direito Penal está servindo de muleta a uma política pública que deveria ficar restrita à administração municipal. Não, não gostaria de sentir o odor de urina no portão da minha casa, mas creio que a abordagem do problema é inadequada. A solução, segundo me parece, passa por campanhas educativas e multas administrativas para os transgressores, desde que o município faça a sua parte, disponibilizando banheiros em quantidade suficiente para o povo.

Abraços a todos.

_________

UPDATE: Ontem fui ao bloco Orquestra Voadora, que se concentrou no MAM e saiu por volta das 16h. Inexistiam banheiros químicos no local (ou então eles estavam tão bem fantasiados que eu não reconheci). Como exigir certas posturas do povo se o poder público não oferece contrapartidas?