quinta-feira, 22 de julho de 2010

Homicídio sem cadáver


Quem é vivo sempre aparece! Passei um tempo sem postar, mas os motivos foram justos: estou fazendo um MBA que ocupa boa parte do meu tempo e estou de férias na faculdade, razão pela qual decidi passar um tempo em desintoxicação, deixando de lado as nem sempre produtivas discussões acadêmicas.

Nesse hiato, não pude deixar de ser bombardeado por notícias sobre o Caso Bruno. Aliás, acho que nem os monges tibetanos estão alheios a ele. Assim, para mostrar que o blog é antenado, decidi escrever sobre "homicídio sem cadáver", ou seja, com desaparecimento do corpo. Entretanto (tem sempre um entretanto), o professor Luiz Flávio Gomes disponibilizou na internet um artigo muito melhor do que qualquer coisa que eu poderia escrever sobre o tema.

Já estava na fossa, quando me lembrei de ter atuado em um caso assemelhado (a reportagem dá a entender que a investigação era da PF, mas, em verdade, o inquérito pertencia à Delegacia de Homicídios do RJ, onde trabalhei durante três anos). Tratava-se da morte da filha da cantora mexicana Glória Trevi, ocorrida quando ela, foragida da justiça, se escondia no Rio de Janeiro. Um homicídio aparentemente culposo, em que o corpo da criança foi supostamente esquartejado e lançado na Lagoa de Marapendi. O inquérito foi devidamente relatado (com autoria), mas, na época, o Ministério Público determinou sua devolução à DP, para novas diligências (até hoje não entendi o motivo, não havia mais nada para ser investigado). Não sei o atual estado da investigação.

Assim, vendo que poderia contribuir com o debate, decidi postar aqui um trecho do meu livro (ô preguiça de escrever), onde me posicionei sobre a questão. Ei-lo e boa leitura!

"Na doutrina penal, uma questão de grande relevância causa tormentosa discussão: é possível o 'homicídio sem cadáver'? Melhor explicando, é possível que haja o reconhecimento da ocorrência de um crime de homicídio sem que o cadáver da vítima tenha aparecido?
"Ensina-se, em processo penal, que, quando um delito deixa vestígios (delitos não-transeuntes), é imprescindível a realização do exame de corpo de delito (artigo 158, CPP). Corpo de delito, na definição de Sérgio Demoro Hamilton, é 'aquilo que torna o crime ou a contravenção palpável, sensível, tangível, perceptível aos sentidos'. O exame de corpo de delito é o exame pericial realizado sobre o corpo de delito. No homicídio, o corpo de delito é o cadáver. Os exames de corpo de delito relacionados são a perinecroscopia (exame em local de morte violenta – artigo 6º, I, CPP) e a necropsia (exame médico-legal realizado sobre o cadáver – artigo 162, CPP). O cadáver, portanto, é a materialidade do homicídio, é a prova indubitável da ocorrência de um evento morte.
"Assim, uma interpretação rasa do artigo 158 do CPP poderia conduzir à conclusão de que não se pode imputar um crime de homicídio a alguém no caso de desaparecimento do corpo da vítima. Todavia, a questão é mais complexa.
"De acordo com doutrinadores de escol, a exigência de exame de corpo de delito em crimes não-transeuntes é uma exceção ao princípio do livre convencimento motivado, pelo qual o magistrado pode apreciar livremente o suporte probatório carreado aos autos, sem que uma prova tenha valor maior do que as demais, desde que fundamente a sua decisão. Diz o artigo 158 do CPP que nem mesmo a confissão do acusado pode suprir a falta de exame pericial. Haveria, portanto, a consagração do princípio da prova legal ou tarifada, em que uma prova se sobrepõe às demais. O magistério, contudo, não encontra suporte na Constituição Federal de 1988. Marcellus Polastri Lima, em excelente obra, sustenta que, 'se a antinomia com o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão racional restava evidente (aliás, a Exposição de Motivos do CPP informa que este é o princípio reitor em matéria de provas), com o novo texto constitucional deve ser repensado o valor absoluto, por muitos defendido, do exame de corpo de delito, e se realmente a confissão do acusado não poderia ser considerada pelo juízo na falta deste'. A atual Carta Magna, em seu artigo 5º, LVI, dispõe que, em processo penal, não serão admitidas as provas obtidas por meio ilícito. Ou seja, sendo lícitas, quaisquer provas podem ser admitidas para fundamentar uma decisão. A confissão do acusado, por exemplo, se obtida em conformidade com o ordenamento jurídico, pode se prestar para embasar um decreto condenatório, ainda que não haja a realização do exame de corpo de delito.
"Ademais, ainda que não se entenda pela incompatibilidade do artigo 158 do CPP com a Constituição, deve ser observado que existem dois tipos de exame de corpo de delito, segundo a lei processual: o exame direto e o indireto. No primeiro caso, a perícia é elaborada diretamente sobre o corpo de delito (por exemplo, a necropsia realizada em um cadáver). Há, por seu turno, o exame indireto quando, desaparecidos os vestígios, outra prova pode ser tomada para comprovar a materialidade do crime. É o que dispõe o artigo 167 do CPP, tratando, especificamente, da prova testemunhal (aplicável, entretanto, a qualquer outro meio de prova idôneo, como, v. g., a prova documental). O processo penal, portanto, possibilita a condenação do agente sem a produção de prova pericial direta.
"Conclui-se, destarte, que é possível a responsabilização do agente por um crime de homicídio, ainda que esteja desaparecido o cadáver da vítima. Esposamos a idéia de que a exigência de exame de corpo de delito não é compatível com a ordem constitucional vigente. Outrossim, não havendo vestígios a serem examinados (o cadáver), admitir-se-á o exame de corpo de delito indireto. Posição contrária consagraria a impunidade e privilegiaria o agente que, além de matar a vítima, ainda oculta o seu corpo, demonstrando maior reprovabilidade em seu comportamento. Em um caso concreto ocorrido no Rio de Janeiro, um casal culposamente matou a filha recém-nascida por sufocação. Como eram estrangeiros residindo ilegalmente no país, decidiram pela ocultação do cadáver da criança, que foi esquartejado, colocado em uma bolsa e atirado em uma lagoa. O crime somente foi relatado cerca de um ano depois de ocorrido, não havendo, assim, qualquer chance de se encontrar o corpo nas águas. Várias testemunhas do fato, todavia, confirmaram a morte da criança, bem como a própria mãe, ao narrar que viu o corpo enrijecido e gelado da própria filha. Parece-nos clara a hipótese de responsabilização por homicídio culposo e ocultação de cadáver (artigo 211, CP)."

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Há grande divergência entre o Código de Processo Penal e a Constituição Federal sobre o caso, mas acredito ser necessário qualquer tipo de prova (seja testemunhal, pericial ou documental) para desvendar a verdade sobre o caso e julgar os devidos homicidas.

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  3. Concordo, Gabriele. Desde que haja prova segura do fato, não vejo razão para se exigir um exame pericial direto. Aliás, essa é a tendência na doutrina.

    Abraços.

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