quarta-feira, 17 de novembro de 2010

HC e "direito à fuga", na visão canhestra do STF

Sou assíduo leitor do blog "Nova Criminologia", editado pelo prof. Lélio Braga Calhau, a quem tive o prazer de conhecer em um seminário sobre criminologia na Emerj, constatando não apenas seu imenso saber jurídico, mas também uma simpatia ímpar. Nessas incursões ao blog, deparei-me com um artigo do Procurador da República Vladimir Aras, que eu gostaria de ter escrito. Assim, tomo a liberdade de reproduzi-lo:


"O Direito de Fugir e o Mundo da Lua

Para o ministro Dias Toffoli, o mais novo entre os juízes do STF, em certas situações, o réu tem“direito de fugir”. Este reconhecimento consta de decisão da 1ª Turma, em 17/ago/2010, por ocasião do julgamento do HC 101.981/SP. O ministro Lewandowski ficou vencido.

O réu C.R.S. fora preso em 24/abr/2008. A 5ª Turma do STJ manteve a prisão, por considerá-la legítima (HC 136.090/SP, relator Jorge Mussi). No STF, alegou-se excesso de prazo, o que foi reconhecido pelo colegiado, embora o réu, com sua fuga, evidentemente tenha atrasado o andamento do processo. Mas o min. Toffoli foi além: Veja:

HC N. 101.981-SP
RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI
EMENTA: Habeas corpus. Constitucional. Processual penal. Excesso de prazo. Superveniência de sentença de pronúncia. Prisão mantida por novo fundamento. Novo título prisional. Habeas corpus prejudicado. Decreto fundado na gravidade abstrata do delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Inadmissibilidade. Fuga posterior do réu do distrito da culpa. Fato irrelevante. Precedentes. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido de ofício.
1. A superveniência de sentença de pronúncia com novo fundamento para a manutenção da prisão cautelar constitui novo título prisional, portanto, diverso da prisão preventiva. Prejuízo da presente impetração.
2. É ilegal o decreto de prisão preventiva que se funda na gravidade abstrata do delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Ademais, em situações excepcionalíssimas, é legitima a fuga do réu para impedir prisão preventiva que considere ilegal.
3. Habeas corpus prejudicado. Ordem concedida de ofício.

Isto é que é ampla defesa! Para o ministro Toffoli, agora é o réu quem julga as razões do juiz. A mensagem é: se o acusado achar que o juiz mandou prendê-lo ilegalmente, pode fugir. E, para esta avaliação jurídica, o réu nem precisa cursar Direito ou fazer exame de Ordem. Vale o achismo “desinteressado” do próprio réu.

A decisão cita um precedente famoso, que foi relatado pelo ministro Marco Aurélio em 2005:

PRISÃO PREVENTIVA – EXCESSO DE PRAZO – FUGA DO ACUSADO. O simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo” (RHC n. 84.851/BA, 1ª Turma, rel. min. Marco Aurélio, j. 20/5/2005).

Neste RHC 84.851/BA, o crime era um latrocínio, ocorrido na cidade de Itaberaba/BA. A vítima deixou viúva e três filhos. O réu L.P.S. ficara foragido de jul/99 ao mês de jan/2003. Ao ser preso, L. P. S. confessou o crime em juízo. Mesmo assim levou a melhor.

Com todo o respeito ao STF, isto pode ser chamado de hipergarantismo, ou garantismo à brasileira. Se a fuga é um “direito natural”, qualquer ordem de prisão é ilegal e qualquer condenação à prisão é ilegítima. A prevalecer esse raciocínio, todos os presos têm de ser soltos. Cabe ao Estado garantir-lhes o direito de liberdade imediatamente.

Vontade de fugir é uma coisa; direito de fugir é outra! Quem está preso quer sair. Mas se a lei admite a custódia preventiva quando presente a necessidade de garantir a aplicação da lei penal (art. 312, CPP), é porque não há direito algum de evasão.

Embora existam muitas prisões desnecessárias e abusivas e vários estabelecimentos prisionais “funcionem” em condições terríveis (este é outro assunto), pergunto: qual réu na face da Terra admitirá que sua prisão foi justamente decretada? E qual não invocaria esse sacrossanto “direito” de fuga. Será que cabe HC para garanti-lo?

Lembro um caso em que um habeas corpus foi imediatamente sucedido por uma fuga. Em 14/jul/2000, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar no HC 80.288/RJ a Salvatore Cacciola, banqueiro acusado de crimes contra o SFN. Dias depois, conforme temiam o Ministério Público e os tribunais inferiores, Cacciola fugiu para a Itália, de onde é nacional. De lá não pôde ser extraditado, por falta de reciprocidade. Só retornou ao Brasil em 2008 quando foi preso em Mônaco e entregue ao nosso País.

Voltando ao tema… No caso relatado por Dias Toffoli em ago/2010 (HC 101.981/SP) tratava-se de cidadão acusado de homicídio duplamente qualificado (art. 121, §2º, I e IV, CP). O crime ocorreu em Sorocaba em jul/2006 e o imputado fugiu para não ser preso, o que gerou a suspensão do processo e o “excesso de prazo”. Ainda assim, a 1ª Turma do STF deu-lhe razão.

Viva o réu, pois a vítima está morta! Seus familiares poderiam argumentar, parafraseando o ministro Marco Aurélio: a vingança também “é um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica”

Diante do homicídio, o mais grave de todos os atos “discrepantes da ordem jurídica”, valeria a regra de talião: “olho por olho, dente por dente”? É para evitar a barbárie e a vendetta que o direito penal e a Justiça criminal existem.

De um lado: por que há tantos réus presos sem necessidade? Do outro: porque há tanta ânsia por Justiça na sociedade, a ponto de em algumas localidades prevalecer não a Lei de Gerson, mas a Lei de Lynch, com linchamentos sumários de autores de crimes violentos? Há que se achar um jeito de harmonizar os direitos processuais do réu e os direitos da sociedade à segurança e à integridade de outros tantos direitos inscritos, para todos, no art. 5º da Constituição. Como está não há como continuar: é o Brasil que está atrás das grades, ao passo que criminosos violentos estão soltos e à espreita de novas vítimas.

Enquanto este dia não vem, quem me consegue uma astronave? Pois quero “dar um rolé nas nuvens” ou exercer o meu direito de fugir para o mundo da Lua."

5 comentários:

  1. Prezado professor, sou seu aluno do segundo periodo da estacio ilha.

    De certa forma, entendo o direito natural como algo que transcende o direito pisitivo. Entendo que o que o min. quis colocar se referindo ao direito à fuga seja a pretensao ao direito que qualquer pessoa teria em viver em liberdade.

    Apesar de ser avessos a esse garantismo penal exarcebado(esse professor tinha um artigomuito bom chamado de garantismo lele, mas infelizmente o blog esta irrestrito. http://professormanuel.blogspot.com/ ), entendo q qualquer pessoa teria o direito à fuga sim, ja q é da natureza humana, ainda mais aqui no bBrasil como é o nosso sistema carcerario; penso q se usarmos a co-culpabilidade, nao seria absurdo pensar nesse direito. Mas que o preso arque com as consequencias de ter fugido, e ai, sim, como a perda dos dias remidos ou ainda, a impossibilidade d erecorrer em liberdade, caso seja pego; e ai sim, penso q a legislacao peca.

    abraco, e ontem na sua aula, acho q tive um inside que, apesar de ter uma eternidade pela frente ate a monografia, ja penso em explorar um tema explicado por voce, sobre a culpabilidade e cocao moral irrestivel; nao sei se alguem ja pensou no que tive em mente, e provavelmente sim, mas as 3 pessoas q expus o raciocinio, com conhecimento em penal, nao haviam feito essa relacao.

    abraco!!

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  2. Marcelo, não diria que o direito à fuga é inerente ao homem, mas sim o desejo de liberdade. Mas tal desejo, assim como tantos outros, comporta restrições. Portanto, o sujieto que foge está frustrando uma finalidade legítima do Estado, merecendo custódia.

    Abraços.

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  3. Muito bom o texto!Concordo com o seu pensamento acima exposto,afinal,quem comete um delito precisa ser ressocializado. Não sou sua aluna mas achei seu blog por acaso e gostei das postagens.Faço Direito no campus Menezes Côrtes e gostaria de saber quais os cursinhos preparatórios vc leciona.Agradeceria muito se vc me passasse o seu e-mail, pois eu gostaria de marcar uma entrevista com vc sobre a sua profissão de Delegado de polícia. Pode ser? Desde já, agradeço a atenção.

    Marcelle.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Professor Brno, refleti sobre o assunto, e acho q confundi o desejo com o direito, como vc disse.

    Fazendo uma analogia entre os fatos, o ministro, por coerencia logica, concordaria em tese do nao cumprimento de uma lei por acha-la injusta. Seria o caso de nao usar a cadeirinha pras criancas no carro ou de urinar na rua por discordar da lei. O ministro se esqueceu do brocardo basico: "SED LEX DURA LEX".

    Só pensei se em casos pontuais nao seria o caso do lecionado por ti sobre a exclusao supralegalda cyulpabilidade, onde, por exemplo, o agente é preso com abuso de autoridade ou caso similar. Mas realmente, vc tem razão.
    Abraço.

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