segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Os costumes e sua influência na interpretação da lei penal: manter casa de prostituição pode se revelar uma conduta atípica?


Saiu no informativo n. 615 do STF: "Não compete ao órgão julgador descriminalizar conduta tipificada formal e materialmente pela legislação penal. Com esse entendimento, a 1ª Turma indeferiu habeas corpus impetrado em favor de condenados pela prática do crime descrito na antiga redação do art. 229 do CP [“Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja ou não intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”]. A defesa sustentava que, de acordo com os princípios da fragmentariedade e da adequação social, a conduta perpetrada seria materialmente atípica, visto que, conforme alegado, o caráter criminoso do fato estaria superado, por força dos costumes. Aduziu-se, inicialmente, que os bens jurídicos protegidos pela norma em questão seriam relevantes, razão pela qual imprescindível a tutela penal. Ademais, destacou-se que a alteração legislativa promovida pela Lei 12.015/2009 teria mantido a tipicidade da conduta imputada aos pacientes. Por fim, afirmou-se que caberia somente ao legislador o papel de revogar ou modificar a lei penal em vigor, de modo que inaplicável o princípio da adequação social ao caso." (HC 104467/RS, rel. Min. Carmen Lucia, julg. em 08/02/2011)

Há muito defendo a revogação do crime de casa de prostituição, por considerá-lo anacrônico: permite-se o comércio de atos sexuais (existindo até mesmo previsão da atividade em regulamentos previdenciários), mas relega-se a prostituta aos perigos do seu exercício em via pública (ou em imóvel próprio, o que, devido aos parcos ganhos - na maioria dos casos - decorrentes da prostituição, torna local pouco atrativo para a clientela), expondo sua integridade corporal e sua saúde a um desnecessário risco de lesão. Ademais, a inevitável e consequente degradação dos logradouros onde a atividade é mais intensa, inclusive com incremento do tráfico de drogas na localidade, causa severo prejuízo aos proprietários de imóveis situados em tais vizinhanças. Por conseguinte, parece-me que a liberação de estabelecimentos dedicados ao abrigo da prostituição, desde que devidamente fiscalizados pelo poder público (me engana que eu gosto...), conferiria maior dignidade à profissão, bem como permitiria um controle mais eficaz da vigilância sanitária, reduzindo os riscos à saúde pública. Isso sem falar na arrecadação de impostos, na redução da corrupção policial e judicial etc. A prof. Luiza Nagib, embora sob fundamentos diversos, adota a mesma conclusão (CRIMES CONTRA OS COSTUMES E ASSÉDIO SEXUAL, versão condensada, 1999, p. 147):

"Tais precedentes fazem pensar sobre a incongruência de permitir-se o exercício da prostituição mas proibir que ela se realize por falta de local. A incriminação da 'casa de prostituição' deve ser repensada em eventual reforma penal, a fim de que as severaspunições previstas para o delito ddeixem de recair sobre as vítimas da ignorância, da fome e do patriarcalismo. Além do que, se as referidas casas são proibidas, o mercado sexual acaba sendo feito nas ruas, o que pode perturbar muito mais a sociedade."

Porém, tenho por intenção comentar a influência dos costumes, como tal entendidas aquelas práticas rotineiras e tão culturalmente enraizadas que geram sensação de legitimidade, no Direito Penal.

Em muitos ramos da ciência jurídica, os costumes são havidos como fonte produtora do Direito. Assim o é, por exemplo, no Direito Empresarial. No que concerne ao Direito Penal, todavia, a situação é diversa. Em face do princípio da reserva legal, não se pode admitir que tipos penais sejam criados, tenham sua sanção alterada, ou sejam revogados, senão por lei ordinária (evidentemente tal limitação não alcança os dispositivos constitucionais). Contudo, ainda que não tenham força criativa, os costumes figuram como importante norte interpretativo das normas penais, especialmente no que tange aos elementos normativos do tipo. Nesse diapasão é a doutrina de Juan Bustos Ramírez e Hernán Hornazábal Malarée (LECCIONES DE DERECHO PENAL, 1997, p. 91):

"(...) podría entenderse que las otras fuentes del derecho, como la costumbre y los principios gererales de derecho, reconocidos como tales en el art. 1.1 CC (N.A.: a referência versa sobre a legislação espanhola), no tendrían ninguna repercusión en el derecho penal. Ello no es así, pues tanto la costumbre como los principios generales del derecho pueden llegar a tener una importante significación como fuentes complementarias para la determinación de ciertos conceptos que formen parte de la estructura de los tipos penales."

René Ariel Dotti, em excelente lição, aprofunda o tema (CURSO, 2003, p. 231):

"A melhor doutrina admite que o costume pode exercer três funções, sejam elas incriminadoras ou não: (a) a função derrogatória, como pode ocorrer com a descriminalização ou despenalização brancas de certas condutas (...); (b) a função integradora que pode ocorrer com as leis penais em branco, quando o preceito complementador se manifestar em razão do costume, como no crime contra a economia popular, decorrente da transgressão de tabela de preço (...); a função interpretativa, indispensável para identificar a criminalidade de condutas que envolvem, por exemplo, alguns elementos normativos do tipo (...)."
"(...) O costume, por mais arraigada que seja a convicção sobre sua necessidade, não tem o condão de criar delitos ou estabelecer sanção. A sua única função na esfera do Direito Penal é simplesmente integrativa (Costa e Silva, Código Penal, p. 17). O CPC estabelece que ao decidir a lide o juiz deverá aplicar as normas legais; não as havendo, 'recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito' (art. 126). Assim, porém, não sucede com a justiça penal quando o magistrado somente poderá reconhecer a criminalidade de um fato se o mesmo estiver previsto como tal em uma norma legal."
"A rigor, o costume não exerce uma função descriminalizadora. Como já foi dito acima, determinados fatos ilícitos podem ocorrer em forma reiterada, com a complacência da sociedade e a tolerância do poder de polícia, como a manutenção de casa de prostituição e o jogo do bicho. A rigor, porém, tais práticas não têm força para descriminalizar tais condutas que podem ser penalmente perseguidas, enquanto a norma proibitiva não for revogada. (...)"

Em suma, embora por alguns seja advogada a possibilidade de revogação da norma penal por seu desuso, essa não é a posição albergada pela maioria dos juristas, sejam eles brasileiros ou não. Entretanto, é evidente que os costumes podem restringir o alcance da lei, através de uma interpretação dinâmica. Por exemplo, os atos libidinosos aptos a configurar um estupro, hoje, não são os mesmos que permitiam a sua caracterização à época da edição do Código Penal, em 1940. Gerenciar uma "sex-shop" outrora poderia ensejar a aplicação da norma tipificada no art. 234 do CP, hoje é uma conduta perfeitamente legal. O próprio conceito de ato obsceno depende da análise de uma série de variáveis, notoriamente ligadas aos costumes sociais, como local e tempo do ato, bem como o grau de cultura do público ao qual o ato está sendo exposto.

Conclui-se, pois, que o artigo 229, objeto da decisão do STF, não foi revogado por se tratar de uma previsão legal decrépita, ao contrário, continua produzindo regularmente seus efeitos. No entanto, pode ser interpretado de forma a adequar seu alcance à realidade atual. Ora, se os crimes sexuais, alhures agrupados sob a rubrica "dos crimes contra os costumes", passaram a ser classificados como "crimes contra a dignidade sexual", muito se deve à atenção legislativa ao tema, depois de ser verificado que as "casas de prostituição" não mais ofendiam o sentimento público de pudor. Ao contrário, a norma voltou-se à proteção da pessoa, no caso aquela que se entrega à prostituição ou à exploração sexual, de modo que não seja vilipendiada em seus direitos, recebendo de seu empregador tratamento análogo à escravidão, com jornadas exaustivas e usurpação considerável dos lucros auferidos. Não havendo tratamento desabonador, ou seja, se o estabelecimento conferir à prostituta segurança e condições razoáveis de salubridade, como acompanhamento médico, deve ser tido como legítimo. Preserva-se, destarte, o texto penal, simultaneamente tutelando-se a adequação social da conduta.

4 comentários:

  1. Direto e inquestionável. Sempre com mta propriedade vc debateu todos os pontos pertinentes ao assunto. Ressalto, ainda, a distinção entre moral e direito, vale dizer,vivemos em um país laico e adultos devidamente capazes podem fazer o que bem entendem com seu corpo, mesmo que acarrete censuras morais. Lamento pelo retrocesso do país. Bjs.

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  2. A prof. Luiza Nagib diz que "a prostituição, tal qual o casamento, é uma instituição intocável na sociedade patriarcal", jamais se discutindo suas causas, mas sempre lamentando-se que o "problema" exista. De fato, a prostituição existe desde a antiguidade e não deve, portanto, sem tratada como um problema moral, mas sim de fundo sócio-econômico. Salvo raríssimas exceções, não existem prostitutas por vocação, mas sim aquelaas que vendem o próprio corpo como forma de subsistência, ainda mais quando se sabe que o mercado de trabalho para as mulheres é muito mais restrito. Mesmo nos casos das prostitutas de luxo, ou seja, aquelas que já amealharam um bom lucro, mas continuam se prostituindo para manter o padrão de vida, há forte influência da sociedade de consumo no comportamento. Mas o que interessa é o seguinte: a despeito da motivação, a pessoa que se prostitui tem o direito de dispor do próprio corpo, como bem entender? Me parece que sim, razão pela qual ela não pode ser tolhida em sua decisão pelas precárias condições de exercício da atividade. De que adianta conferir à prostituta autonomia de vontade e relegá-la aos rigores do submundo, como ocorre na noite de Copacabana? Bjs.

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  3. De fato, é interessante que o STF mantenha um pensamento o qual para muitos (e me incluo) ainda é conservador e injustificável nos tempos modernos. Inegavelmente a sociedade evoluiu, sobremaneira, no que tange ao pudor e à quebra de paradigmas atinentes à conduta sexual.
    Só por amor ao debate, repensei o assunto e lembrei que tais ambientes (creio eu) são propícios para a prostituição infanto- juvenil. Como resolver?
    Ao meu ver, não deveria ser permitido o exercício da profissão, pois acho que quando você institucionaliza você acaba estimulando tal prática. Mas, já que é permitido, acaba gerando, de fato, uma incongruência, como bem ressaltou no post.

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  4. Acho que a oficialização destes estabelecimentos, ao contrário de fomentar a exploração sexual de crianças ou adolescentes, facilita sua fiscalização. Também creio que a prostituição (de adultos) é algo já enraizado na sociedade, razão pela qual existirá de uma forma ou de outra, independentemente de estímulos. Até porque, no mais das vezes, é a oportunidade que resta à pessoa que a ela se entrega (não é uma questão de opção). Então, que seja exercida com segurança.

    Bjs.

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