terça-feira, 6 de março de 2012

Lei Maria da Penha (11.340/06) e os reflexos da decisão do STF proferida na ADI 4.424

Em conversas com alunos e colegas de trabalho, percebi alguma confusão no que tange à recente decisão do STF na ADI 4.424, acerca da natureza da ação penal nos crimes praticados com violência contra a mulher em âmbito doméstico ou familiar. Essa dificuldade surge, principalmente, em virtude da proximidade entre os conceitos de violência de gênero (ou seja, contra a mulher) e violência doméstica, embora sejam institutos distintos. Tentarei nesse texto espancar todas as dúvidas sobre o tema.

A ADI 4.424 foi proposta pela Procuradoria-Geral da República, visando a conferir interpretação conforme à Constituição Federal no que concerne aos arts. 12, I; 16; e 41, todos da Lei Maria da Penha. Tais dispositivos se referem à representação da ofendida (os dois primeiros - o artigo 12, I, menciona que a representação da ofendida deve ser reduzida a termo, e o artigo 16 aduz a irretratabilidade da representação em sede policial, devendo o ato se dar em juízo) e à inaplicabilidade da Lei 9.099/95 aos casos de violência de gênero (artigo 41). Sustentou, a Procuradoria, que nos casos de lesão corporal leve contra a mulher, a ação penal seria pública incondicionada, sob pena de violação aos princípios da dignidade humana, da isonomia (material) e da proporcionalidade, em seu aspecto da proibição de proteção deficiente.

A tese foi encampada pelo STF, que, em manifestação do Min. Luiz Fux, agasalhada por maioria de votos, decidiu pela impossibilidade de aplicação do artigo 88 da Lei 9.099/95, dispositivo este que contempla a exigência de representação unicamente para o crime de lesão corporal leve, às hipóteses previstas na Lei Maria da Penha.

Para a compreensão do acórdão e de sua extensão, devemos estabelecer duas premissas: a violência contra a mulher em âmbito doméstico e familiar (violência de gênero) é mais abrangente do que a violência doméstica, no que tange às suas formas (espécies); mas é subjetivamente mais restrita.

No que concerne às formas de violência, a Lei Maria da Penha não se basta na agressão física ou psíquica. Vai além, estabelecendo que também são espécies de violência de gênero a sexual, a patrimonial, a moral etc. Nesse diapasão, um crime de violência doméstica (artigo 129, p. 9o, do Código Penal) praticado contra vítima mulher figura apenas como uma das possibilidades da violência de gênero, como também o são o estupro, o roubo, a injúria, a ameaça, o constrangimento ilegal, o cárcere privado e outros tantos crimes. Todavia, em se tratando da subjetividade passiva, o crime de violência doméstica é mais amplo do que a Lei Maria da Penha, já que mesmo o homem pode figurar no polo passivo da conduta.

Em suma, assim como a violência doméstica (que é uma forma de lesão corporal leve), a ameaça também é crime sobre o qual pode incidir a Lei Maria da Penha, desde que praticados contra vítima mulher. Agora vejamos: ambos são crimes que exigem representação para a propositura da ação penal. A diferença reside no diploma legal onde repousa a exigência. No caso da ameaça, a menção à ação condicionada consta do Código Penal, ao passo em que na violência doméstica a representação é prevista na Lei 9.099/95. A decisão do STF, portanto, afastou a exigência de representação apenas no que tange à lesão leve, pois somente esta tem a natureza da ação penal definida pela Lei 9.099/95. O artigo 41 da Lei Maria da Penha, ao impedir a aplicação dos institutos despenalizantes da Lei dos Juizados Especiais à violência de gênero, acabou resvalando também no artigo 88, transformando a ação penal em incondicionada. Todavia, para os demais casos em que a representação é exigida, com esteio no Código Penal ou em leis extravagantes, mantém-se íntegra a condição de procedibilidade.

Por conseguinte, podemos extrair da decisão do STF as seguintes conclusões:

(a) o crime de violência doméstica, quando praticado contra vítima mulher, nos termos da Lei 11.340/06, é de ação penal pública incondicionada;

(b) se o crime de violência doméstica tem o homem como vítima, não se aplica a Lei 11.340/06 e, assim, permanece íntegra a exigência do artigo 88 da Lei 9.099/95, ou seja, a ação penal é pública condicionada;

(c) ainda que o crime não seja de violência doméstica, mas meramente de lesão corporal leve, se a vítima for mulher e o crime for praticado nos moldes da Lei 11.340/06, a ação penal é pública incondicionada, embora permaneça condicionada para a vítima do sexo masculino;

(d) em caso de lesão corporal leve praticada contra mulher, se a hipótese não se enquadra na Lei 11.340/06 (por exemplo, agressão entre desconhecidos em via pública), mantém-se a exigência do artigo 88 da Lei 9.099/95, isto é, a ação penal é pública condicionada;

(e) em outros crimes onde se exija representação, não decorrendo tal exigência do texto da Lei 9.099/95 (ameaça, exercício arbitrário das próprias razões, violação sexual mediante fraude, assédio sexual etc.), a ação penal continua pública condicionada, ainda que o caso se amolde ao preceituado na Lei 11.340/06.

Abraços a todos.

2 comentários:

  1. Dr.,boa tarde
    Parabéns pelo blog; excelentes matérias que têm me garantido uma ótima leitura no fim de noite.
    Em relação a este post,me permito ficar com corrente contrária a esse entendimento.
    A Lei 9.099 trouxe 4 institutos despenalizadores, 3 dos quais exteriores à vontade da vítima(Conciliaão, Transação e Suspensão Condicional do Processo)e um inerente à sua vontade (Representação).Eu parto do pressuposto de que o art. 41 quer evitar as medidas despenalizadoras exteriores à vontade da vítima, e não a que é inerente à sua vontade.Adotando o seu entendimento,me sintiria, como mulher vítima, uma incapaz, recebendo tratamento de inimputável que é alguém - opinião pessoal - despersonalizado, sem direito a nada!Não se pode alegar que está impedindo que ela seja coagida porque existe uma audiência solene para que se retrate ou prefira manter sua estrutura familiar.E se a volência ocorrer com frequência e, consequentemente esta mulher buscar a polícia várias vezes mas sempre se retratando, ai teremos não um caso para atuação estatal intervindo na ação,mas um caso de ajuda psicológica,por conta da baixa autoestima dessa mulher.E por fim, se alguém entende que essa violência é violação de direito humano, também é o estupro, e nem por isso ele deixou de ser de ação pública condicionada.
    Se eu fosse vítima, gostaria de manter o meu direito de decidir o que é melhor pra mim,naquele momento ao menos. Essa complacência me deixaria mais enfraquecida e não adiantaria muita coisa, findo o processo.
    Dr, eu tenho uma grande curiosidade que talvez o senhor, como delegado, poderia esclarecer: das mulheres agredidas, qual é o percentual das que e que se retratam ou não formalizam a denúncia, quando chegam à delegacia que estão empregadas? Eu penso que há íntima relação entre as agredidas que se retratam e que não têm emprego ou são donas de casa, o que já daria para pensar em uma polícita de emprego para essas pessoas.
    Bem, abraços e mais uma vez parabéns.
    Ju

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  2. Ju, sua posição é exatamente igual àquela esposada pela prof. Maria Berenice Dias, que é uma incansável defensora das mulheres, e idêntica à esposada pelo STJ. Ou seja, é muito bem fundamentada. Mas eu pendo para o lado da decisão do STF. Na prática das delegacias, o que vemos corriqueiramente é a mulher se retratar da representação não como expressão de sua autonomia da vontade, mas por pressões diversas, sócio-econômicas, afetivas, físicas etc. Assim, adoto uma posição temperada: creio que a Lei 11.340/06 só pode ser usada para as mulheres em situação de vulnerabilidade, em uma interpretação teleológica do diploma. Para as demais, mantem-se a exigência de representação. No que concerne à sua pergunta, diria que em cerca de 90% dos casos anteriores à decisão do STF havia retratação, sendo que, em sua maioria, por mulheres devidamente empregadas. O que não quer dizer que não dependam economicamente do parceiro ou que não tenham outro tipo de dependência. Abs.

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