Consta da nova redação do meu livro, que será em breve lançado pela Editora Freitas Bastos:
"A segunda hipótese do inciso II cuida do furto mediante fraude. O agente, aqui, utiliza um ardil ou um artifício para burlar a vigilância da vítima sobre a coisa e dela se apoderar. O engodo, note-se, não proporciona imediatamente a posse da coisa, caso que configuraria crime de estelionato (artigo 171).[1] Ludibria-se a vítima para que se tenha acesso ao objeto, com a posterior subtração. Já nos deparamos com o caso de um sujeito que, a pretexto de auxiliar uma senhora idosa na operação de um caixa eletrônico, disse-lhe que o dinheiro, após a digitação da senha, sairia em outra máquina. Assim, realizada a operação, a vítima se dirigiu ao caixa indicado pelo agente, aproveitando-se este do distanciamento da lesada para levar consigo o dinheiro sacado. Certamente, o caso é de furto mediante fraude, já que a pessoa lesada não entregou voluntariamente o dinheiro ao agente, mas sim teve a sua vigilância burlada, facilitando a subtração do bem. Suponhamos, todavia, que o sujeito ativo tivesse solicitado à vítima que lhe repassasse parte do dinheiro, justificando com o pagamento de uma taxa a ser recolhida pelo uso do equipamento. Não haveria a subtração caracterizadora do furto, mas sim a concessão de uma vantagem indevida, mediante fraude. Crime de estelionato. De forma clara e concisa, Weber Martins Batista diferencia o furto mediante fraude do estelionato: 'No caso do furto, o artifício é empregado para subtrair a coisa. No estelionato, para recebê-la'.[2]
Acerca do tema em comento, alguns casos enfrentados pela doutrina e pela jurisprudência merecem destaque. A pessoa que, após abastecer seu automóvel em um posto de gasolina, foge sem pagar, comete crime de furto mediante fraude, já que o combustível somente foi colocado no tanque em virtude de um engodo, consistente na alegada intenção de pagar pelo bem. Não se cuida, portanto, nem de furto simples, como preconizado por alguns, tampouco de estelionato, pois, com a fuga, houve subtração do combustível. Se, contudo, o agente adquire um bem, prometendo o pagamento em ocasião posterior e, fraudulentamente, não o efetua, há estelionato, já que a coisa é repassada voluntariamente ao sujeito ativo, não ocorrendo subtração. Configura caso de furto mediante fraude a conduta do agente que, fazendo-se passar por manobrista, recebe o veículo da vítima e foge com o bem. Tal recebimento não induz a tipificação do estelionato, uma vez que o dono não cedeu o veículo ao agente, mas tão-somente o deixou sob sua guarda. O uso de um simulacro de arma de fogo para a intimidação da vítima, ao seu turno, não caracteriza furto fraudulento, apesar do engano a que é levada a vítima. Isso porque, além da fraude, há uma grave ameaça, que configura elementar do crime de roubo. Hungria cita, como exemplo de furto mediante fraude, um caso descrito por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere: o ladrão remove com uma pinça ou estilete a chave deixada internamente na fechadura, derrubando-a sobre um papel estirado por sob a porta, puxando em seguida o papel e, com isso, conseguindo obter a posse da chave.[3] Ousamos discordar do grande criminalista. Não há fraude, ninguém é ludibriado, mas sim habilidade na execução criminosa.
Mais debatido é o caso da subtração de energia. Suponhamos que o agente, montando um 'gato', ou seja, ligando a rede elétrica de sua casa diretamente à fiação existente na rede pública de distribuição, passe a fazer uso da energia sem a sua passagem pelo relógio de medição. Há, evidentemente, crime de furto, pois é subtraído um bem disponibilizado para a população. A hipótese se complica, entretanto, quando, em vez de captar a energia diretamente da rede elétrica, o agente adultera o funcionamento do relógio de medição, fazendo com que indique um consumo menor do que aquele efetivamente verificado. De início, constata-se a utilização de uma fraude na execução do delito. A modificação feita pelo agente é um artifício para ludibriar a empresa concessionária do serviço público. Mas essa fraude configura crime de furto fraudulento ou de estelionato? Weber Martins Batista, escrevendo sobre o tema, diz haver estelionato. Sustenta sua posição asseverando que não há subtração, mas a entrega livre do bem, embora viciada pela fraude.[4] Discordam Paulo José da Costa Jr. e Álvaro Mayrink. Para o primeiro autor, 'na espécie apresentada, o que se verifica é o furto qualificado pela fraude, que se distingue do ardil que integra o estelionato'.[5] Já o segundo jurista aduz que, no caso, a retirada da coisa é feita sem a concordância da vítima, caracterizando a subtração.[6] Pensamos que a hipótese importa crime de estelionato. Há, sim, a entrega voluntária da coisa ao agente. A empresa concessionária realiza a instalação elétrica e coloca a energia à disposição do consumidor, limitando-se a constatar, regularmente, o quanto de energia foi consumido. A fraude, assim, não incide sobre o fornecimento, mas sobre a cobrança futura. Adulterado ou não o marcador, a captação do bem se dá da mesma forma, iludindo-se apenas a aferição do consumo. Não há subtração, mas recebimento da energia. Pode ser adotado o mesmo entendimento nos casos de adulteração em bomba de combustível, de fornecimento de gás etc.
Mostra-se relevante, ainda, a atualíssima discussão acerca das transferências bancárias fraudulentas, dos saques em conta-corrente mediante uso de cartões eletrônicos obtidos mediante ardil e condutas afins. Caso comum é aquele em que o sujeito ativo vai à casa da vítima, normalmente uma pessoa idosa, passando-se por funcionário público ou empregado de alguma instituição financeira, justificando sua presença pela necessidade de um 'recadastramento'. Depois de questioná-la sobre seus dados qualificativos, solicita a apresentação do cartão bancário e o fornecimento da respectiva senha, devolvendo à vítima um cartão parecido com o original. Em seguida, o agente vai a uma agência bancária e saca a quantia depositada na conta do ingênuo lesado. Trata-se de furto fraudulento, uma vez que um engodo é usado para que se conquiste acesso ao depósito bancário, sendo a quantia subtraída invito domino. Entretanto, se o agente usar o cartão eletrônico para a contratação de um empréstimo junto à instituição financeira, passando-se por titular da conta, o crime é de estelionato, pois o lesado é a instituição financeira ludibriada para pensar que contratava com pessoa distinta do criminoso, a qual lhe fornece a vantagem indevida. Há furto mediante fraude, também, quando o agente capta informações bancárias da vítima através de um software malicioso, sorrateiramente instalado em seu computador (phishing), e depois emprega os dados para a realização de transferências eletrônicas. Já o uso de cartões de crédito 'clonados' caracteriza estelionato, pois o lesado é o estabalacimento comercial em que trabalha o empregado iludido.
Para que incida a qualificadora, pode ser usada a fraude em qualquer momento do iter criminis, desde os atos preparatórios (o agente que se disfarça para penetrar na casa da vítima, por exemplo) até os executórios (um dos coautores distrai a vítima para que o outro se apodere da coisa, v. g.). Naturalmente, uma vez consumado o furto, não há relevância no engodo (portando a res furtiva depois da subtração, o agente usa um ardil para enganar o policial que, suspeitando de sua conduta, o aborda)."
Sobre o tema, merecem destaque alguns casos peculiares, que suscitam dúvidas mais pela falta de uma observação atenta do que pela ausência de lastro científico:
a) Uso fraudulento de cheques: se o cheque é emitido para pagamentos em estabelecimentos comerciais (por exemplo, a aquisição de eletrodomésticos em uma loja), o crime é de estelionato, pois a vantagem indevida (mercadoria) é dada ao estelionatário em troca de uma contrapartida fajuta. O mesmo ocorre se o título fraudulento é usado para movimentar diretamente a conta de um correntista desavisado (por exemplo, cheque com assinatura falsificada ou valores adulterados para depósito em conta do criminoso ou para saque), pois a vantagem, embora não concedida, somente é obtida depois de ludibriado o funcionário do banco, que autoriza a transação, concedendo a vantagem ao criminoso.
b) Locação de automóveis mediante apresentação de documentação falsa, com posterior desaparecimento do veículo: há estelionato. O dolo ab initio exclui qualquer possibilidade de apropriação indébita. Nesse caso, o produto do crime (automóvel) é entregue ao autor pela empresa, que acaba lesada pela não-devolução, em que pese a promessa de restitui-lo. Situação diferente é a do veículo subtraído durante um test drive: "Segundo entendimento desta Corte, para fins de pagamento de seguro, ocorre furto mediante fraude, e não estelionato, o agente que, a pretexto de testar veículo posto à venda, o subtrai (STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 672987 MT 2004/0083646-3 - Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA - Relator: Ministro JORGE SCARTEZZINI – Data do Julgamento: 25/09/2006)."
c) Movimentação eletrônica fraudulenta de contas: saques e transferências configuram furto. Empréstimos contraídos, pagamentos e condutas assemelhadas, estelionato (ver texto supra).
Abraços a todos.
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[1] STJ, Informativo nº 453: “A Turma deu provimento ao recurso especial para subsumir a conduta do recorrido ao delito de furto qualificado pela fraude (art. 155, § 4º, II, do CP), não ao de estelionato (art. 171 do CP). In casu, o réu, como gerente de instituição financeira, falsificou assinaturas em cheques de titularidade de correntistas com os quais, por sua função, mantinha relação de confiança, o que possibilitou a subtração, sem obstáculo, de valores que se encontravam depositados em nome deles. Para o Min. Relator, a fraude foi utilizada para burlar a vigilância das vítimas, não para induzi-las a entregar voluntariamente a res” (REsp 1.173.194-SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 26/10/2010).
[2] MARTINS BATISTA, Weber. O furto e o roubo…, op. cit., p. 141. O autor cita um caso julgado pelo TACrimSP (JUTA, 69/353), em que duas pessoas, em comum acordo com a caixa de um supermercado, levavam várias mercadorias a esta, que, registrando somente algumas, permitia que as excedentes fossem levadas. A decisão, correta, foi pela tipificação do furto mediante fraude, já que a vontade do titular do bem (no caso, a empresa) não foi viciada para entregar espontaneamente a res furtiva para os agentes. Ao contrário, ignorava-se o ocorrido, caracterizando o furto em virtude da subtração. O STJ, em acórdão de lavra do Ministro Vicente Leal, tratou de definir os limites do furto fraudulento e do estelionato: “No crime de estelionato a fraude antecede o apossamento da coisa e é causa para ludibriar sua entrega pela vítima, enquanto no furto qualificado pela fraude, o artifício malicioso é empregado para iludir a vigilância ou a atenção. Ocorre furto mediante fraude e não estelionato nas hipóteses de subtração de veículo posto à venda mediante solicitação ardil de teste experimental ou mediante artifício que leve a vítima a descer do carro. Habeas corpus denegado” (HC 8179/GO – 6ª Turma).
[3] HUNGRIA, Nélson. Comentários…, op. cit., v. VII, p. 43.
[4] MARTINS BATISTA, Weber. O furto e o roubo…, op. cit., p. 149. A mesma posição é adotada por Fernando Capez (Curso…, op. cit., p. 363).
[5] COSTA JR., Paulo José da. Comentários…, op. cit., p. 470.
[6] MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Direito penal…, op. cit., p. 634.