Hoje vou me limitar a reproduzir dois textos encontrados na rede sobre a embriaguez ao volante, ambos versando sobre o direito de não fazer prova contra si mesmo. O primeiro é do Juiz Federal André Lenart, com quem tive o prazer de estudar na faculdade e de compartilhar, ainda que por pouco tempo, a profissão de Delegado de Polícia. O segundo é do Procurador da República Bruno Freire de Carvalho Calabrich. Ambos são excelentes, concorde-se ou não com os argumentos expendidos. Abraços a todos.
O Direito de Dirigir Bêbado (André Lenart):
"A Lei Seca trouxe de volta à discussão a constitucionalidade da exigência de soprar o bafômetro. Desde as saudosas aulas na Faculdade, nunca entendi as restrições feitas pela jurisprudência à aplicação desse instrumento. Tampouco me entrava na cabeça que ao obrigar um motorista aparentemente embriagado a soprá-lo o Estado estivesse violando o direito do condutor imprudente à “não-auto-incriminação”. Voz tímida em meio à verdade repetida insistentemente pela maioria, sempre me pareceu que o Estado tinha o dever de retirar de circulação – literalmente – motoristas cuja condição física pusesse em risco a vida, a integridade física e o patrimônio de outros indivíduos. E que maneira mais simples, rápida, barata e eficiente de determinar a possível embriaguez que bafejando o etilômetro? Era e continua sendo absurdo, a meu ver, que uma pessoa possa de recusar a um exame tão banal, isento de constrangimentos corpóreos ou morais.
Até onde sei, nos Estados Unidos o nemo tenetur se detegere assegura ao Acusado apenas o direito de ficar calado ou de mentir, desde que não esteja depondo formalmente como testemunha. São corriqueiros os mandados judiciais autorizando a coleta de material orgânico para exame de DNA, e a ninguém ocorre que a pessoa possa se opor à ordem, sem motivo convincente. Na Alemanha, o princípio do nemo tenetur se ipusum accusare é visto como derivação do direito à personalidade (das allgemeine Persönlichkeitsrecht) e do princípio do Estado de Direito (Rechtsstaatsprinzip) (art. 2 I GG e Art. 1 I GG). Impede que a pessoa seja forçada a depor (”Niemand wird gehalten, sich selbst anzuklagen”), sem que isso valha como confissão de culpa (BVerfG StV 1995, 505 [506]; BGHSt 42, 139 [152]). Além do direito ao silêncio (Schweigerecht), o acusado pode mentir, sem o risco de ser punido (Urs Kindhäuser, Strafprozessrecht, p. 63, rubrica “Die Rechte des Beschuldigten” – Os Direitos do Acusado: “er kann sogar lügen, ohne eine Sanktion befürchen zu müssen…”).
Não parece que a jurisprudência desses países vá tão longe a ponto de dar ao Suspeito/Acusado o direito de eximir-se da coleta de material orgânico ou, menos ainda, de recusar um mero sopro no bafômetro. O motivo é singelo: eles não estão fazendo prova contra si próprios; quem faz essa prova é o Estado. O STF, contudo, parece conferir dimensão muitíssimo mais ampla ao princípio do nemo tenetur: ainda que um fio de cabelo ou uma gota de saliva bastem à investigação ou à instrução processual, é preciso que a polícia ou o juiz os catem no chão. Não podem ser “obtidos” contra a vontade do Suspeito, pouco importando o direito de outra pessoa a conhecer sua origem genética (exame de paternidade) ou o interesse da vítima e da sociedade em geral no esclarecimento de crimes (persecução criminal). É mais um exemplo eloqüente da distorção que a alfândega dos trópicos impõe às doutrinas estrangeiras que aqui aportam."
O teste do bafômetro e a nova lei de trânsito (Bruno Freire de Carvalho Calabrich):
"Na imprensa e nas ruas, muito se tem comentado sobre a nova lei de trânsito (lei n.º 11.705, de 19 de junho de 2008), que alterou diversos dispositivos do Código Brasileiro de Trânsito (lei n.º 9.503/97). Um dos mais polêmicos desses dispositivos é, sem dúvida, o que trata do exame de bafômetro (art. 277 do CBT). Segundo a nova lei, o motorista está obrigado a se submeter ao teste e, caso se recuse a fazê-lo, poderá ser punido. Entretanto, razoável parcela da população, da imprensa e das próprias autoridades encarregadas de aplicar a lei, ao que parece, ainda não deram a devida atenção ou não compreenderam corretamente o alcance da nova previsão legal. É o que se pretende esclarecer nestas breves linhas.
De início, é importante distinguir o crime de embriaguez ao volante da infração administrativa de embriaguez ao volante. O crime de embriaguez na condução de veículo automotor é previsto no art. 306 do CBT: "Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". A pena prevista para esse crime é de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Já a infração administrativa de embriaguez ao volante, na redação dada pela lei nº 11.705/08, é assim descrita: "Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". Para tal infração de trânsito, considerada gravíssima, são cabíveis as penalidades de multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses, além das medidas administrativas de retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. Uma mesma conduta pode caracterizar tanto uma infração de trânsito quanto um crime de trânsito – basta que o motorista esteja embriagado com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas (ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência). Nesse caso, responderá tanto perante os órgãos de trânsito quanto perante a justiça criminal. Caso a concentração seja inferior a 6 decigramas, o motorista responde apenas pela infração administrativa.
Feita essa introdução, uma observação é necessária: ao contrário do que vem sido divulgado, o motorista pode se recusar, sim, a fazer o teste do bafômetro. A recusa a fazer o teste do bafômetro não é crime, nem dá prisão. E o que acontece com aquele que se recusa a fazer o teste? A lei é clara (§3º do art. 277 e art. 165 do CBT): o motorista que se recusar a fazer o exame será punido com (a) multa e (b) suspensão do direito de dirigir por 12 meses. Além disso, no ato da fiscalização, a autoridade deverá realizar (c) a apreensão da carteira de habilitação e (d) retenção do veículo até que um condutor habilitado venha retirá-lo. As conseqüências previstas pela lei para quem se recusa a se submeter ao bafômetro são as mesmas previstas para aquele que é flagrado ao dirigir sob a influência de bebida alcoólica, infração (administrativa) de trânsito do artigo 165 do CTB. Na prática, é como se a lei, diante da negativa do motorista em se submeter ao exame, "presumisse" seu estado de embriaguez, mas apenas para fins de aplicação das penalidades e medidas estritamente administrativas (não criminais).
As duas primeiras conseqüências da recusa em fazer o exame – (a) multa e (b) suspensão do direito de dirigir por 12 meses – são tratadas no CBT como penalidades, e, por tal natureza, dependem da instauração de um procedimento administrativo (arts. 280 e seguintes do CBT), no curso do qual o motorista pode se defender por escrito. Após apresentada a defesa, caso o órgão de trânsito, ao final, decida por efetivamente aplicar aquelas penalidades, o motorista pode ainda interpor recurso às Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI (art. 16 do CBT), como acontece hoje em dia com qualquer multa ou penalidade prevista na legislação de trânsito.
As duas outras conseqüências – (c) apreensão da carteira e (d) retenção provisória do veículo – são medidas administrativas, e podem ser aplicadas de imediato pela autoridade de trânsito no próprio ato de abordagem do motorista. Em relação à retenção do veículo, é interessante notar que, para a liberação, basta que o condutor solicite a outra pessoa que dirija o automóvel em seu lugar. Pode ser um amigo que venha ao local a seu chamado ou até mesmo um carona que o esteja acompanhando no momento.
A apreensão da carteira e a retenção do veículo são as únicas medidas a serem aplicadas de imediato ao motorista que se recusa a se submeter aos exames solicitados pela autoridade policial. Não cabe, pela simples recusa, a prisão do motorista. Note-se ainda que o motorista pode se recusar a se submeter a qualquer exame, seja o teste do bafômetro, seja qualquer outro procedimento previsto no artigo 277 do CBT, a exemplo de exames clínicos ou de sangue. Assim, caso o condutor do veículo se negue a participar de qualquer procedimento de avaliação de seu estado de embriaguez, sequer caberia a condução coercitiva do motorista à delegacia de polícia ou a outro local onde se poderia realizar um exame médico. Mas, em qualquer caso de recusa, serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas mencionadas acima.
É um princípio jurídico pacificamente aceito que "ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo" (tradução do brocardo latino "nemo tenetur se detegere"). Lido o princípio de outra forma, diz-se que ninguém pode ser constrangido a contribuir para a própria acusação. Assim, o agente de trânsito ou qualquer outra autoridade não podem forçar ninguém a fazer o teste do bafômetro nem a se submeter a nenhum outro procedimento que possa resultar em uma prova contrária a seus interesses. Considerando esse princípio, a lei, como visto, tratou de prever sanções (precisamente as referidas penalidades e medidas administrativas) para aquele que se recuse a fazer o teste, de modo a tornar "interessante" para o motorista tal opção – para não ser punido administrativamente, o motorista pode "arriscar" o exame. O motorista, dessa forma, terá sempre a opção; jamais poderá ser "forçado" (coagido) a realizar o exame.
A recusa a se submeter ao exame não é, a rigor, um "direito" do motorista, e sim uma obrigação, para cujo descumprimento a lei prevê sanções no âmbito administrativo. Mas, estando o condutor ciente de que pode ser punido administrativamente, a não submissão ao exame é, afinal, uma opção exclusivamente sua. As alternativas à sua frente, assim, são: (a) submeter-se ao exame e arriscar conseqüências penais mais gravosas, caso seja detectada uma concentração superior a 6 decigramas por litro de sangue; ou (b) não se submeter ao exame e sofrer as sanções administrativas previstas no art. 165 do CBT, a serem aplicadas de imediato (apreensão da habilitação e retenção provisória do veículo) e ao final de um processo administrativo regular (multa e suspensão do direito de dirigir por 12 meses). Claro que todas essas considerações, na prática, não valem para o motorista que não tem dúvidas quanto a seu estado de embriaguez. Aquele que não ingeriu nenhuma bebida alcoólica provavelmente não terá nenhuma objeção quanto a se submeter a qualquer exame.
Por fim, é necessário destacar que, nos termos do §2º do art. 277, a infração de dirigir sob a influência de álcool (art. 165 do CBT) "poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor". Assim, o testemunho dos agentes ou o relato de um médico que esteja no ato da fiscalização de trânsito pode ser suficiente para a caracterização da infração, mas essa prova será apreciada no curso de um processo administrativo regular, na forma antes descrita. Lembre-se que, caso se recuse ao teste do bafômetro (ou a qualquer outro procedimento), o motorista não pode ser conduzido coercitivamente a outro local para realizar o exame.
Considerando a opção que o motorista tem de se recusar ao teste do bafômetro ou a qualquer outro exame (aceitando, com isso, a aplicação das sanções do artigo 165 do CBT), a única hipótese para que seja forçosamente levado a uma delegacia é o caso de ser preso em flagrante pelo crime de embriaguez ao volante. Mas a prisão em flagrante por esse crime só pode ocorrer quando estiver claramente caracterizada a embriaguez do motorista, o que de regra resulta de um exame de alcoolemia positivo. Não sendo realizado esse exame, outra possibilidade é o caso de embriaguez patente, verificada no ato pelos agentes de trânsito ou por médicos em virtude de "notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor", conforme previsão do art. 277, §2º do CBT. Embora a lei, neste artigo 277, refira-se apenas à comprovação da infração administrativa do art. 165 do CBT, não há por que não aplicá-la também ao crime do artigo 306. O problema, entretanto, será uma questão de prova, a ser ponderada tanto pela autoridade responsável pela lavratura de um (eventual) auto de prisão em flagrante quanto pelo Ministério Público e pelo Judiciário, ao ensejo do processo penal a ser instaurado contra o motorista que for flagrado em (suposto) estado de embriaguez evidente. É de se admitir, entretanto, a dificuldade prática da substituição de uma prova técnica (como o bafômetro) por outra prova, considerando a exigência "matemática", para a configuração do crime, de uma concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue.
Assim, a prisão em flagrante em caso de recusa do agente ao teste do bafômetro deve ocorrer apenas em casos de embriaguez evidente, que há de ser documentada pelo delegado de polícia no auto de prisão em flagrante, inclusive com testemunhas e com qualquer outra prova apta a demonstrar o fato. Se não se tratar de uma situação de notória embriaguez, comete abuso de autoridade o agente que "prende" ou "conduz coercitivamente" o motorista para fazer um exame ao qual ele se recusa. Na dúvida quanto a seu estado de embriaguez, o condutor não pode ser preso; caso assim se proceda, a prisão será ilegal e deve ser prontamente invalidada pelo Judiciário, submetendo-se os responsáveis a um processo criminal por abuso de autoridade, além de outras sanções administrativas e cíveis cabíveis."