terça-feira, 11 de agosto de 2009

Lei nº 12.015: crimes sexuais com nova descrição típica

Dias atrás, escrevi que estava para ser sancionada a lei que dá nova redação aos crimes de natureza sexual. Disse, ainda, que voltaria a tratar do tema tão logo a alteração legislativa fosse efetivada. Pois bem, já se encontra em vigor a Lei nº 12.015/09, que promoveu profundas modificações em importantes tipos penais, como o estupro. Assim, para facilitar a análise do texto legal, preparei um quadro comparativo:



É claro que, devido à magnitude da reforma, torna-se temerário, para não dizer leviano, emitir opiniões definitivas sobre o assunto, razão pela qual vou apenas consignar minhas primeiras impressões sobre a lei, sem qualquer pretensão de parecer o dono da verdade. Ainda não tive a oportunidade de conversar com outros professores acerca das inovações, tampouco encontrei artigos comentando o tema. Por conseguinte, vou me abster de comentários mais aprofundados, aguardando a evolução do debate doutrinário e jurisprudencial (afinal, vocês estão achando que é fácil interpretar essa porcaria?). Vamos às observações:

  • Como os antigos crimes de estupro e atentado violento ao pudor passaram a ter tratamento equiparado, sob a mesma rubrica (art. 213 - Estupro), torna-se evidente a possibilidade de continuidade delitiva entre a conjunção carnal e os atos libidinosos diversos, quando impostos coativamente a alguém. Não há mais que se falar que as condutas não são da mesma espécie.
  • Quando, em um mesmo contexto fático, alguém for constrangido à prática de conjunção carnal e à prática de atos libidinosos diversos (como, por exemplo, o coito anal), existirá crime único e não mais delitos diversos, como a doutrina outrora defendia.
  • O crime de estupro, embora tenha passado a contemplar uma vasta gama de atos libidinosos, manteve suas margens penais excessivamente altas, razão pela qual, para se preservar a proporcionalidade do dispositivo, os atos de escassa reprovabilidade (como beijos roubados, por exemplo) deverão ser alijados de seu âmbito de incidência.
  • Ao alocar os antigos estupro e atentado violento ao pudor no mesmo dispositivo, o legislador se inspirou no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que contém cláusula assemelhada.
  • A pena para o estupro com resultado morte passa a ser de 12 a 30 anos. Parece-me que, para se manter a coerência sistêmica, esse resultado deverá ser doloso ou culposo, traçando-se um paralelo para com o crime de latrocínio. Deve ser observado que as margens penais mínima e máxima são incrementadas, respectivamente, em 6 e 20 anos, um acréscimo que seria desproporcional ao resultado unicamente culposo. Por consequência, o mesmo entendimento deve ser aplicado ao estupro com resultado lesão grave.
  • A violação sexual mediante fraude (que abrange os antigos delitos de posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude) admite dois meios executórios: a fraude (óbvio!) e "outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima". Confesso que ainda não consegui pensar em um bom exemplo desse segundo meio, mas é certo que ele não envolve as hipóteses em que a vítima não pode oferecer resistência (nesse caso, há "estupro de vulnerável" - art. 317-A, § 1º).
  • Perdeu-se uma excelente oportunidade para o aperfeiçoamento da péssima redação do artigo 216-A (assédio sexual).
  • Incompreensível a pena em abstrato estabelecida para o estupro de vulnerável (superior à pena do estupro). Vejamos: se uma pessoa convence uma criança de 11 anos a com ela praticar conjunção carnal, fica sujeita a uma sanção mínima de 8 e máxima de 15 anos de reclusão; no entanto, se esta mesma criança é espancada para a manutenção do amplexo sexual, a pena varia entre os limites de 6 a 10 anos. Qual é a hipótese mais gravosa? Certamente a segunda! Caso de evidente lesão ao princípio da proporcionalidade.
  • Entendo que a gravidade da sanção no estupro de vulnerável também leva à compreensão de que o delito somente poderá ser aplicado nas hipóteses de evidente imaturidade sexual da vítima. Por conseguinte, a discussão existente à época da violência presumida ainda é pertinente, só se podendo falar de crime quando houver a necessidade de proteção ao vulnerável. Sem afetação à objetividade jurídica, a conduta se torna atípica.
  • O crime do artigo 218-A vem a suprir uma lamentável lacuna do texto anterior. Deparei-me, certa vez, com o caso de um sujeito que, hospedado na casa de certa família, passou a se masturbar perante uma criança que lá residia. E tal conduta não encontrava guarida em nenhum tipo penal. A situação foi contemplada pela modificação da idade da vítima (antes, vítima com idade entre 14 e 18 anos; hoje, menos de 14 anos). Não concordo, todavia, com a parte final do artigo, que exige um elemento subjetivo especial (finalidade de satisfazer a lascívia própria ou alheia). Totalmente dispensável. Essa inconformidade deriva de outra situação concreta que tive o desprazer de enfrentar: certa pessoa, contratada para dar aulas de "sexologia" em um colégio da rede pública de ensino, passou a exibir filmes pornográficos para crianças com idade média de 10 anos. Há reprovabilidade em tal comportamento, mas, na investigação, não se constatou qualquer intenção do sujeito ativo em satisfazer a libido de quem quer que seja. Ocorrido hoje, esse caso não encontraria adequação típica no artigo em comento.
  • Sobremaneira interessante o tipo penal inscrito no novo art. 218-B. De plano, já pode ser dito que houve a revogação tácita do art. 244-A do ECA (infeliz esquecimento do legislador, que promoveu várias revogações expressas). O objeto de meu interesse, todavia, está no § 2º, I, que tipificou o aproveitamento dos serviços prestados por adolescente em situação de prostituição ou exploração sexual (se a pessoa que presta os serviços é menor de 14 anos, há estupro de vulnerável). Deixa de ter relevância toda a celeuma criada por uma decisão do STJ em episódio recente, que disse ser inaplicável o (revogado) art. 244-A a tal hipótese.
  • A ação penal agora é sempre pública (condicionada ou incondicionada), consoante redação do art. 225. A súmula 608 do STF, no entanto, permanece válida? É bom que se diga que as razões de direito alegadas para a sua edição (incidência do disposto no art. 101 do CP) permanecem intocadas, mas creio que o Tribunal se inclinará para o seu cancelamento.
  • No que tange ao lenocínio, veio em boa hora a referência à qualquer forma de exploração sexual (além da exploração da prostituição), pois nem todos os casos de aproveitamento da sexualidade alheia envolvem habitualidade na prática dos atos libidinosos (elemento exigido para a caracterização da prostituição). Deve ser notado, entretanto, que, quando se fala de eventualidade, essa se dá na prática sexual, pois alguns crimes ainda requerem habitualidade na conduta do autor (como a casa de prostituição).
  • Perfeita a equiparação textual entre o tráfico internacional e o tráfico interno de pessoas, pois a diversidade anteriormente verificada era injustificável. Assim, condutas que, antes da reforma, eram consideradas preparatórias para o tráfico internacional (como o aliciamento), hoje são tidas como atos executórios.
  • As causas de aumento de pena do art. 234-A (incisos III e IV, já que os incisos I e II foram objeto de veto presidencial) são razoáveis, merecendo destaque o inc. IV. Essa majorante somente pode ser aplicada quando há a transmissão efetiva da doença. Se houver o mero risco de transmissão, o crime sexual deve ser combinado com os delitos previstos nos arts. 130 e (considerando que moléstia sexualmente transmissível não é sinônimo de moléstia venérea) 131 do CP. No entanto, havendo estupro ou estupro de vulnerável, se a doença transmitida for incurável, caracteriza-se a qualificadora referente à lesão corporal de natureza grave (restando afastada a causa de aumento da pena).
  • Por derradeiro, a melhor parte da reforma: O ART. 234-C FOI VETADO PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA! Alvíssaras!
Um abraço a todos.

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