Recentemente, assistimos estarrecidos à ressurreição de uma prática que parecia relegada aos escaninhos da história: a prisão por vadiagem. O fato se deu na cidade paulista de Assis, onde uma operação conjunta das polícias civil e militar fez valer o preceituado no art. 59 da Lei de Contravenções, assim tipificado: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita. Pena: prisão simples, de quinze dias a três meses”. A ação foi motivada por um suposto “choque de ordem”, expressão em moda dentre os administradores públicos que desejam conferir um toque de austeridade às respectivas gestões. Todavia, tal política demonstra nítida inclinação para o totalitarismo, ainda que, aparentemente, esteja legalmente respaldada.
A desventura da implantação do nacional-socialismo na Alemanha é episódio ainda vivo na memória coletiva e representou, em termos jurídico-penais, um triste hiato, sobre o qual devemos nos debruçar para que o passado não se repita. No período compreendido entre 1933 e 1945, muitos juristas alemães, apoiados por expertos em várias áreas do conhecimento, fomentaram a idéia de extermínio dos indivíduos de “menor valor”, categoria que englobava os “estranhos à comunidade”, ou “associais”, aí compreendidos todos aqueles “que se afastavam dos valores e princípios que regiam a comunidade do povo (Volksgemeinschaft), tanto porque cometiam fatos delitivos, criminosos, como porque sem chegar ainda a isto se comportavam de forma contrária a estes princípios e levavam uma vida dissoluta, de vagabundagem, mendicância, ou simplesmente refratária ao trabalho” (MUÑOZ CONDE). Em consequência, vários diplomas legais foram editados, começando com a primeira lei de depuração da função pública, de abril de 1933, e culminando com a Lei de Estranhos à Comunidade, de 1944, que, em seu § 13, previa a esterilização compulsória dos “associais”. Houve, ainda, os extermínios em massa, as internações em campos de trabalhos forçados, ou mesmo a mera detenção daqueles que não se comportavam dentro do padrão considerado ideal para a comunidade ariana, sempre havendo um diploma legal a dar supedâneo a tais penalidades. Podemos, entretanto, considerar estas leis legítimas?
OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS COMO REQUISITOS DE LEGITIMAÇÃO DO PODER PUNITIVO
Uma das conquistas das sociedades democráticas foi a limitação do poder punitivo estatal pelo nullum crimen, nulla poena sine lege, assim enunciado por FEUERBACH, mas que tem origens mais remotas. De acordo com JUAREZ TAVARES, a legalidade penal, ao exigir um processo legislativo democrático para a incriminação de condutas, assegura proteção à pessoa humana diante do Estado, ressaltando que “sem este princípio parece que, à primeira vista, todas as pessoas ficariam inteiramente vulneráveis em face dos caprichos dos governantes e de todas as entidades que, utilizando-se do poder do Estado, quisessem fazer valer os interesses por meio de uma repressão generalizada, a ser exercida sobre seus opositores”.
Contudo, o princípio da legalidade não pode ser interpretado de forma estanque, sob pena de legitimar qualquer intervenção legislativa, por mais absurda que seja. Mais uma vez valemo-nos das palavras de JUAREZ TAVAREZ: “O que se observa é que uma vez adotado o princípio de que qualquer crime deva estar, previamente, definido em lei, se de fato isso ocorrer, ou seja, se uma certa conduta vier a ser capitulada, legalmente, como criminosa, a primeira conclusão a que se chega é que essa criminalização é legítima, ou seja, a definição legal de uma conduta como criminosa torna essa criminalização uma evidência, à primeira vista, incontestável. Portanto, o princípio da legalidade, que inicialmente se apresentava como uma garantia da liberdade, passa a servir de legitimação dos atos destinados a suprimir essa liberdade”. Em suma, não basta a previsão legislativa para fundamentar a atividade abstratamente incriminadora. É necessário que se vá além, buscando as emanações político-criminais da legalidade penal, de forma a orientar a produção normativa.
Decorrência lógica da legalidade é o princípio da proteção de bens jurídicos (ou da lesividade, ou ofensividade, ou princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos), aqui entendido como a “tutela de dados fundamentais para a realização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema social, compatíveis com a ordem constitucional” (LUÍS GRECO). O Direito Penal visa a proteger ataques intoleráveis a bens jurídicos constitucionalmente relevantes, não podendo se ocupar com lesões ínfimas ao objeto da tutela, com direitos de valor infraconstitucional ou com punições puramente simbólicas. No entanto, consoante adverte BUSTOS RAMÍREZ, “hay que tener en cuenta desde un punto de vista conceptual que um principio material puede ser desvirtuado en su eficacia o como programa de acción en cuanto sea formalizado y es así como el principio de lesividad, desde tal orientación formalista, puede llegar a confundirse o subsumirse en el principio de legalidad de los delitos y las penas”. Assim, como se faz com o princípio da legalidade, a proteção de bens jurídicos não pode ser reduzida a uma fórmula simplesmente dogmática e redundante (o Direito Penal visa a proteger bens jurídicos; bens jurídicos relevantes são aqueles tutelados pelo Direito Penal), mas deve também ser avaliada em sua dimensão político-criminal. Afasta-se a enunciação formalista, porém desprovida de alma, para se considerar sua eficiência enquanto baluarte da cidadania e da liberdade.
Desse postulado político extrai-se (dentre outras conclusões, como a proibição de se incriminar atos meramente imorais, diretrizes ideológicas, afetações de bens não fundamentais etc.) que é vedada a incriminação de “modos de ser”. É cediço, hoje, que apenas ações que conflitam com direitos de terceiros ou com a harmonia do sistema social podem justificar a intervenção penal (direito penal do fato), sendo rejeitadas punições voltadas para a personalidade do indivíduo ou para o modo com que este conduz sua vida (direito penal do autor). Apenas exteriorizações comportamentais podem ensejar a aplicação de uma pena.
A INCONSTITUCIONLIDADE DA CONTRAVENÇÃO PENAL DE VADIAGEM
Nesse contexto, percebe-se o total descompasso existente entre a Lei das Contravenções Penais – no que tange à vadiagem e outras condutas igualmente tipificadas – e a Constituição Federal (sim, porque o princípio da proteção de bens jurídicos, entendido como emanação da legalidade, tem sede constitucional). Segundo GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “ser vadio ou ocioso é parte da liberdade de expressão de qualquer ser humano, constituindo, identicamente, manifestação de sua personalidade, quadro pertencente à sua intimidade”.
Não se pode negar, ainda, o evidente caráter discriminatório da norma, que pune tão-somente a pessoa que não tem renda (causa espécie a leitura do parágrafo único do art. 59, o qual afirma que “a aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena”; isto é, o necessitado é contraventor, ao passo em que o abastado é um bon vivant). Em última análise, verifica-se notória lesão ao princípio da isonomia, pois o dispositivo cria uma situação de desigualdade absolutamente injustificável.
A vadiagem, diga-se, não é a única previsão inconstitucional do Decreto-Lei nº 3.688/41. Há outras, mas merece atenção o revogado art. 60, que tratava da mendicância (pelos mesmos motivos inconstitucional). Essa contravenção não escapou ao legislador que, através da Lei nº 11.983/09, reformou a LCP, eliminando-a. Perdeu a chance de estender seus esforços, dedicando tempo e recursos a uma modificação discreta.
CONCLUSÃO
Como bem afirma MUÑOZ CONDE, “os associais em sentido lato, é dizer, os mendigos, os vagabundos, as prostitutas, os viciados em drogas, etc., são também hoje em dia nas sociedades modernas considerados como sujeitos molestos, prejudiciais, incômodos para uma convivência pacífica e bem organizada, quando não diretamente delinquentes que devem ser tratados como tais, e às vezes sem muita atenção, para preservar a ordem e a segurança das classes acomodadas”. Reside justamente no preconceito social e na tendência à preservação do statu quo a aceitação de que qualquer comportamento não convencional deva ser tratado como caso de polícia. O Direito Penal, contudo, não pode se curvar a reclamos inflados pelo sentimento hodierno de insegurança, derivados de uma percepção obscurecida pelo terror midiático diário. Qualquer país que se pretenda democrático deve primar, acima de tudo, pela liberdade de seus cidadãos.