sábado, 10 de dezembro de 2011

Falsificação de papeis públicos, fraude tributária e estelionato: enquadramento típico e concurso aparente de normas


Agora há pouco relatei um inquérito policial versando sobre recolhimento fraudulento de tributo estadual, através de documento de arrecadação (DARJ) falso. Inicialmente, ainda na Fazenda Pública, a conduta do autor foi enquadrada no artigo 1.o, III, da Lei n. 8137/90, que trata da redução ou supressão de tributos através de documentos fraudados sobre operações tributáveis. Entretanto, o Ministério Público, em bem fundamentada promoção, alterou a adequação típica da conduta, in verbis:

"Como é cediço, os tipos penais do art. 1.o da Lei 8.0137/90 exigem para sua configuração a redução ou supressão do tributo (grifos no original). (...) Na dicção do inciso III do art. 1.o da Lei 8.137/90, estará configurado o crime quando o agente falsificar ou alterar 'nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo a operação tributável'. Percebe-se, portanto, que documentos de arrecadação de tributos como o DARJ ou outros similares, não se enquadram na descrição típica supramencionada, já que não tratam de 'documento relativo a operação tributável', mas meros instrumentos de arrecadação. Além disso, nos parece que a falsificação empregada após o lançamento do tributo não se amolda aos tipos penais descritos na Lei 8.137/90. O uso de documento e de arrecadação falso em volição destacada e em momento posterior à lavratura do auto de infração, para fins de comprovação de pagamento, compromete a função de garantia do aludido documento. Sendo assim, inexistindo dúvida quanto à existência do crédito tributário, a falsificação de documentos de arrecadação para fazer prova de pagamento do tributo, no sentido de manter o fisco e terceiros em erro, data venia, não encontra guarida na Lei 8.137/90. Não obstante, não se descarta a possibilidade prática dos crimes previstos nos artigos 293, V, 304 e 171 do Código Penal. (...)"

Irretocável o posicionamento, no que tange à inaplicabilidade da Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária à espécie. Todavia, discordo da conclusão, preferindo adequação típica diferente daquela esposada pelo órgão ministerial.

Desde logo, cumpre observar a inexistência do estelionato. Para explicar melhor a tese, parto para uma analogia. Suponhamos que uma pessoa pague a aquisição de roupas em uma loja com um cheque sem fundos, sabedora dessa peculiariedade. Incorrerá no crime patrimonial, mais especificamente naquela modalidade prevista no p. 2.o, VI, do art. 171, CP. Agora, e se o pagamento for de dívida pretérita? Suponhamos que essa mesma pessoa pegue dinheiro emprestado com um amigo. Restando inadimplida a dívida, é procurado pelo credor, que, depois de muita conversa, aceita um cheque para a satisfação do seu direito de crédito. Sendo o cheque desprovido de fundos, não haverá se falar em estelionato. E qual é a razão? Ora, o estelionato pressupõe prejuízo para o lesado, não bastando a mera fraude patrimonial. No primeiro caso, a vantagem só foi entregue em virtude da imediata contrapartida, desconhecendo-se o caráter fraudulento do título de crédito. No segundo caso, a vantagem foi entregue independentemente de qualquer contrapartida imediata. Quando da entrega do cheque, o desfalque patrimonial para o lesado já existia. Ou seja, não surgiu naquele momento. Não houve prejuízo patrimonial além daquele que já existia outrora. Há meramente ilícito civil. De semelhante, o mesmo se dá no caso da dívida tributária, que é preexistente. Não há novo prejuízo para o erário. Portanto, afasta-se o estelionato.

No caso da falsificação de papeis públicos (art. 293, V) e do uso de documento falso (art. 304), o último obviamente não ocorreu. Isso porque o art. 304 somente se refere aos documentos previstos nos artigos 297 a 302, existindo clara inadequação típica. Em verdade, o uso de DARJ falsificado está previsto no art. 293, p. 1.o, I, que tem a mesma pena do caput. Ainda assim, não poderia existir em conjunto com o falso, salvo se praticados por pessoas diferentes. Aplica-se, no caso em apreço, o princípio da consunção, isto é, os delitos se encontram em unidade fática, apontando, doutrina e jurisprudência majoritárias, para a absorção do uso pelo falso, do qual seria pós-fato impunível. Somente seria correta a alusão ao uso se praticado por quem não falsificou o documento. No caso investigado, inexiste prova do autor da falsificação. Assim, correta a tipificação no uso (não o do artigo 304, mas o do p. 1.o do art. 293).

Deve ser ressaltado que, apesar de todo esse debate teórico, o trabalho investigativo acabou frustrado pela prescrição do crime, que tem pena máxima de oito anos de reclusão (prescrição em doze anos). A infração consumou-se em 1999, sendo logo percebida pela Receita Estadual. No entanto, o procedimento "dormiu" na Receita até 2008, quando foi remetido ao MP, o qual o encaminhou à Delegacia um ano depois. Com o apertado prazo para investigação, que demandaria inclusive prova pericial, a extinção da punibilidade foi inevitável. Depois vêm os policiólogos de plantão afirmando a ineficácia do inquérito policial, baseando-se em um oceano de estatísticas, mas sem um palmo de profundidade...

Segue a íntegra do relatório acostado aos autos:

"Cuida-se, o feito, de inquérito policial instaurado para a apuração de supostos crimes de estelionato, falsificação de documentos ou papeis públicos e uso de documento falso, respectivamente previstos nos artigos 171, 293, V, e 304 do Código Penal, imputados aos responsáveis pela empresa P. e P. LTDA. De acordo com as informações carreadas aos autos, depois de lançada dívida tributária acerca da arrecadação de ICMS, os responsáveis pela empresa falsificaram um espelho de DARJ, deixando de recolher aos cofres públicos o valor de R$ 3.371,31. A materialidade do delito encontra-se comprovada pelas peças de informação acostadas aos autos. 

No entanto, sobre a tipificação, algumas considerações devem ser expendidas. Cumpre observar, inicialmente, que o estelionato tem como elementar típica a ocorrência de prejuízo para outrem. No caso em tela, o tributo já era devido e continuou no mesmo patamar, inexistindo incremento da lesão ao erário público pela conduta fraudulenta. Não há como se equiparar a conduta em apreço, por exemplo, a uma compra paga através de cheque sem fundos, onde o título é contraprestação à vantagem indevida. Ou seja, não houve lesão patrimonial, falecendo enquadramento típico no artigo 171 do CP.

No que concerne ao uso de documento falso, o crime do artigo 304 faz expressa referência aos documentos previstos nos artigos 297 a 302, o que não é o caso. Analisando o evento em apreço, verifica-se, extreme de dúvidas, que a conduta se amolda ao preceituado no p. 1., I, do artigo 293. Não há que se falar na ocorrência do falso (crime que absorveria o uso, figurando este, como pós-fato impunível) uma vez que não há provas, nos autos, da autoria da fabricação do documento, mas apenas de sua utilização indevida.

Resta caracterizado, portanto, crime cuja pena varia entre os limites de três a oito anos de reclusão, além de multa. Considerando que a apresentação do DARJ falso se deu em 23 de novembro de 1999 (embora a data do documento se refira ao mês de março de 1998, sua apresentação só ocorreu no ano seguinte), verifica-se a existência de lapso temporal de 12 anos, a contar da data da consumação do crime até o presente momento. INSTA SALIENTAR QUE AS PEÇAS DE INFORMAÇÃO SÓ CHEGARAM A ESTA DELEGACIA EM 2009, OU SEJA, DEZ ANOS APÓS A PRÁTICA CRIMINOSA, NÃO HAVENDO DESÍDIA POLICIAL, MAS EVIDENTE DEMORA NA REMESSA DAS PEÇAS DE INFORMAÇÃO. Pela pena em abstrato, observa-se que o crime prescreve em exatos doze anos (artigo 109, III, do CP), razão pela qual houve a notória extinção da punibilidade. 

Por conseguinte, encaminho o feito ao Ministério Público para apreciação e adoção das medidas pertinentes, sugerindo seu arquivamento."

Abraços a todos.

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