Inserta no § 3º, a
receptação culposa trata da aquisição ou do recebimento de coisa que, por sua
natureza ou em virtude da desproporção entre o valor e o preço, ou pela
condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso. O
agente, aqui, não conhece a origem ilícita da coisa, tampouco assume o risco de
adquirir ou receber produto de crime. Simplesmente age com falta de cuidado
objetivo, não presumindo aquilo que é presumível.
Os verbos tipificados no
núcleo do tipo são adquirir e receber, também previstos no tipo fundamental
doloso. Adquirir significa a obtenção onerosa ou gratuita do domínio da coisa
(por exemplo, a compra de um aparelho de som automotivo, produto de furto ou a
dação em pagamento de dinheiro roubado, aceita pelo receptador; ou o
recebimento em doação de títulos de crédito que são objeto de extorsão). Não se
exclui o caso em que a coisa vai parar em poder do agente por sucessão causa
mortis, sabendo o herdeiro de sua origem ilícita. Receber é acolher a coisa
como possuidor, não ensejando transferência de domínio, como no recebimento em
depósito, ou em garantia pignoratícia. A ocultação foi afastada do da norma
porque, obviamente, não pode ser praticada culposamente. Os verbos transportar
e conduzir também não foram contemplados.
A presunção é informada
pela natureza da coisa, pelo preço desproporcional ou pela peculiar condição de
quem a oferece. No primeiro caso, tem-se a dúvida residindo na essência do
objeto, como uma jóia que é vendida com a gravação do nome de seu proprietário
original. A segunda hipótese é revelada pelo preço vil. Já nos detivemos na
investigação de um caso em que o agente comprara um telefone celular moderno
pelo preço de uma versão popular, sendo descoberta a sua origem em um furto. A
desproporção entre preço e valor é fundada somente em regras econômicas,
afastado o valor sentimental ou qualquer outro que não possa ser objetivamente
considerado pelo adquirente ou recebedor. É evidente que, se o agente
desconhece o valor de mercado da coisa, em erro de tipo invencível, será
atípica a conduta. A condição de quem oferece a coisa é o último indício de
culpa, tratando-se da improbabilidade daquela pessoa oferecer tal bem em um
negócio lícito, como no caso do mendigo que oferece um aparelho de som
automotivo a alguém, ou em que é vendido um relógio de ouro por camelô. O crime
é material, dependendo da tradição da coisa para alcançar a consumação. Em se
tratando de conduta culposa, não é admissível a forma tentada.
O objetivo deste artigo, contudo, é a
verificação da compatibilidade vertical na norma em comento para com a
Constituição Federal. Remando contra a maré da doutrina majoritária e
modificando a nossa própria orientação anterior, entendemos que previsão da
receptação culposa não se sustenta em uma análise sistemática do dispositivo.
Vejamos: o artigo 180, caput, contempla apenas a conduta criminosa
praticada com dolo direto, ou seja, o receptador sabe estar realizando o ato
sobre um produto de crime; a receptação qualificada abrange o dolo eventual, além
do dolo direto, mas restringe sua aplicação aos casos de crime praticado em
atividade comercial ou industrial; a receptação culposa, ao seu turno, somente
trata da falta de cuidado objetivo do agente, que deveria presumir ter em suas
mãos o produto de um crime, afastada a restrição da atividade comercial ou
industrial, bem como qualquer espécie de conduta dolosa. Como fica a situação,
assim, da pessoa que, assumindo o risco de ter como objeto de sua conduta o
produto de um crime, o faz fora da atividade comercial ou industrial?
Explicando melhor, como pode ser tipificada a conduta da pessoa que recepta um
bem, movida pelo dolo eventual, sem estar abrangida pela qualidade de
comerciante, mesmo que irregular, ou industrial? Não é possível a inserção da
conduta no caput, que exige o dolo direto; tampouco no § 1º, que
necessita da prática comercial ou industrial; muito menos no § 3º, que
pressupõe conduta culposa. Estamos diante, portanto, de conduta atípica. Ou
seja, não há punição para aquele que, com dolo eventual, recepta o bem.
Entretanto, há sanção para a conduta culposa, o que gera uma iniquidade: como
punir criminalmente a conduta menos grave (culpa) e não a mais grave (dolo
eventual). É diante desta perplexidade que consideramos inaplicável o § 3º do
artigo 180 do CP. Nessa hipótese, há obvia violação ao princípio da
proporcionalidade, eivando de vício insanável o dispositivo. Além do que, na
prática, a assunção do risco e a conduta culposa são separados por uma tênue
fronteira, de difícil delimitação, razão pela qual entendemos que, até pela
escassa reprovabilidade, o ideal seria a extirpação da receptação culposa do
Código Penal.
Abraços a todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário