"Este Superior Tribunal firmou a orientação de que a majorante inserta no art. 9º da Lei n. 8.072/1990, nos casos de presunção de violência, consistiria em afronta ao princípio ne bis in idem. Entretanto, tratando-se de hipótese de violência real ou grave ameaça perpetrada contra criança, seria aplicável a referida causa de aumento. Com a superveniência da Lei n. 12.015/2009, foi revogada a majorante prevista no art. 9º da Lei dos Crimes Hediondos, não sendo mais admissível sua aplicação para fatos posteriores à sua edição. Não obstante, remanesce a maior reprovabilidade da conduta, pois a matéria passou a ser regulada no art. 217-A do CP, que trata do estupro de vulnerável, no qual a reprimenda prevista revela-se mais rigorosa do que a do crime de estupro (art. 213 do CP). Tratando-se de fato anterior, cometido contra menor de 14 anos e com emprego de violência ou grave ameaça, deve retroagir o novo comando normativo (art. 217-A) por se mostrar mais benéfico ao acusado, ex vi do art. 2º, parágrafo único, do CP. REsp 1.102.005-SC, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 29/9/2009".
Trata-se do primeiro pronunciamento feito por um Tribunal Superior acerca da reforma dos crimes sexuais (Lei nº 12.015/09). Antes da reforma, todos sabem, o estupro (artigo 213 do CP) podia ser praticado mediante violência real (incidência de uma força física sobre o corpo da vítima), grave ameaça (constrangimento psicológico, consistente na promessa de um mal sério e verossímil) ou violência presumida (ficta, nos casos em que a vítima era menor de quatorze anos, alienada ou débil mental ou quando não podia oferecer resistência). Nesse último caso, utilizava-se o disposto no antigo artigo 224 do CP, norma de natureza explicativa que conceituava a violência presumida. O estupro também era (ainda é) arrolado pela Lei nº 8.072/90 como crime hediondo. E a Lei de Crimes Hediondos, ao seu turno, previa, no artigo 9º, uma causa de aumento de pena a todos os crimes nela especificados, sempre que estes fossem praticados contra as pessoas citadas no artigo 224 do CP. Ou seja, o artigo 224 do CP servia como elementar do tipo penal estupro, quando praticado mediante violência presumida. E também servia como majorante dos crimes hediondos, dentre os quais estava o estupro. Caracterizava e, simultaneamente, incrementava a pena do mesmo delito. Não é difícil observar o bis in idem que existia na hipótese. Assim, boa parte da doutrina e da jurisprudência passaram a defender que a majorante da Lei dos Crimes Hediondos somente poderia ser aplicada ao estupro quando praticado mediante violência real ou grave ameaça, nunca na violência ficta.
Com a reforma promovida pela Lei nº 12.015, o artigo 224 foi expressamente revogado. O artigo 213, hoje, só admite violência ou grave ameaça como meios executórios. A violência presumida virou crime autônomo, o novíssimo estupro de vulnerável (artigo 217-A). E o artigo 9º da Lei 8.072/90, que fazia menção ao artigo 224? Foi tacitamente revogado (de acordo com o STJ), uma vez que hoje inexiste o artigo que lhe dava eficácia normativa, complementando seu conteúdo. Até aí, tudo bem, não há qualquer surpresa.
A questão se torna tormentosa quando da análise do conflito aparente de normas. Suponhamos que uma pessoa tenha mantido conjunção carnal com vítima menor de quatorze anos antes da inovação legislativa. Deverá ser apenada de acordo com a antiga redação do artigo 213 do CP ou a conduta do agente subsumir-se-á ao atual artigo 217-A, do mesmo diploma? A resposta é: depende. Se o agente induziu a vítima à prática sexual, sem qualquer constrangimento físico ou psicológico, aplica-se a lei anterior. Se o crime foi praticado mediante violência real ou grave ameaça, impõe-se a retroatividade da lei nova.
A lei penal, como é notório, só retroage quando mais benéfica ao delinquente. Ainda sob a égide da antiga redação do Código Penal, se alguém cometesse um estupro mediante violência presumida, ficaria sujeito a uma pena de reclusão, de seis a dez anos. Pela redação atual (estupro de vulnerável), a pena é de reclusão, de oito a quinze anos. Não há dúvidas de que se trata (isoladamente considerada) de novatio legis in pejus (não estamos fazendo qualquer consideração acerca de concurso de crimes). Entretanto, havendo violência ou grave ameaça, a pena, na redação anterior, deveria ser acrescida da metade (artigo 9º da Lei nº 8.072/90). Assim, as margens penais abstratas passariam a ser de nove a quinze anos. Ou seja, a redação atual se torna mais benéfica (sim, porque o estupro de vulnerável abarca quaisquer meios executórios, inclusive a violência e a grave ameaça), justificando-se a retroação.
Essa foi a posição esposada pelo STJ, que, a nosso sentir, ainda não será pacificada (é possível defender-se a retroação apenas da abolitio criminis do artigo 9º da Lei de crimes hediondos, mantendo-se, de resto, a redação antiga do CP?), demandando um esforço interpretativo da doutrina e da jurisprudência. Mas já é um norte.
Olá professor...quanta falta faz aqui em Valença. Estava procurando um artigo a respeito dessa alteração e acabo encontrando seu blog. Super legal. um grande abraço e fique com Deus.
ResponderExcluirMagda
Obrigado, Magda. O blog é feito para vocês. Aproveite bastante!
ResponderExcluirCaro professor, quer dizer, então, que não incide a causa de aumento do art. 9º, lei 8072/90, ao crime de latrocínio praticado contra menor de 14 anos? Os condenados por latrocínio antes da lei 12015/09 terão direito ao desconto da pena relativo à majorante prevista no revogado art. 9º?
ResponderExcluirCom certeza. É indubitável que o artigo 9º da Lei de Crimes Hediondos foi (tacitamente) revogado. Aplica-se, então, a retroação da norma mais favorável ao criminoso. É evidente que essa não era a intenção do legislador, mas faltou uma análise mais aprofundada das consequências da modificação legislativa. Abraços.
ResponderExcluirGostaria de ter uma posição sobre a discussão acerca de o aumento de pena contido no artigo 224 estar contido por analogia no artigo 217-A, podendo aumentar a pena amparado no artigo 217-A, para crimes considerados hediondos
ResponderExcluirMarcelo, o conteúdo normativo do artigo 224 realmente foi transportado para o artigo 217-A. Trata-se de aplicação do princípio da continuidade típico-normativa, em razão do qual condenados por estupro praticado mediante violência ficta não podem alegar "abolitio criminis". O reconhecimento desse princípio é saudável ao direito penal, mas merece ressalvas. O artigo 9º da Lei nº 8.072/90 faz expressa remissão ao artigo 224, não ao artigo 217-A. Assim, não se percebe a perfeita conformação do artigo 9º quando se busca norma diversa da citada em seu texto; ou seja, descumpre-se uma exigência legal. Nem se fale em integração do tipo por analogia: primeiramente, a norma é desfavorável ao indivíduo; ademais, os artigos 224 e 217-A não são assemelhados, tendo, inclusive, naturezas distintas (o primeiro era uma norma explicativa, o segundo, uma norma incriminadora). Portanto, creio inviável valer-se o artigo 217-A para a satisfação da Lei dos Crimes Hedindos (certamente haverá doutrinadores defendendo a hipótese). Abraços.
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