domingo, 15 de julho de 2012

Decisões recentes do STJ comentadas


CORRUPÇÃO DE MENORES


As alterações trazidas pela Lei 12.015/09, que redefiniu o crime de corrupção de menores, previsto no artigo 218 do Código Penal (CP) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), levaram à extinção de punibilidade de réu acusado de manter relações sexuais com uma menor de idade. A decisão foi dada de forma unânime pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e acompanhou o voto da relatora, ministra Laurita Vaz.

Em 2002, o réu era professor de uma adolescente de 14 anos e manteve relações sexuais com ela, valendo-se de sua condição de preceptor. Por essa razão, foi condenado à pena de dois anos e seis meses pelo crime previsto na redação original do artigo 218, combinado com o artigo 226, inciso II, do Código Penal.

No recurso ao STJ, a defesa afirmou que a conduta do acusado se amoldava à redação original do artigo 218: manter ato de libidinagem com a vítima maior de 14 anos e menor de 18 anos. Entretanto, a nova redação dada pela Lei 12.015 não mais considera o fato como criminoso.

Lacuna legislativa

Para a ministra Laurita Vaz, a nova legislação mais benéfica deve ser aplicada retroativamente. Ela observou, em seu voto, que a lei 12.015 alterou o delito de corrupção de menores previsto na Lei 8.069/90 e revogou, expressamente, a Lei 2.252/54, que tratava do mesmo tema. Esclareceu, ainda, que a conduta também não encontra adequação no artigo 244-B do ECA, já que este tem como principal objetivo evitar a entrada dos menores no mundo da criminalidade.

A relatora entendeu haver uma 'lacuna legislativa' na tutela da dignidade sexual de menores, pois não há legislação específica para o ato sexual com maior de 14 e menor de 18 anos, não inserido em contexto de favorecimento de prostituição ou outra forma de exploração sexual.

A ministra destacou que, seguindo o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, é obrigatório concluir que houve abolitio criminis (quando lei posterior descriminaliza uma conduta), tendo em vista que o sujeito passivo do crime de corrupção de menores deve ser menor de 14 anos, sendo certo que a conduta narrada na denúncia não se encontra prevista em nenhuma outra norma incriminadora. Desse modo, ela determinou a cassação da sentença condenatória e reconheceu a extinção da punibilidade."

Comentários: A Lei 12.015/09 estabeleceu como princípio a liberdade sexual plena para as pessoas com idade igual ou superior a quatorze anos. Somente haverá crime quando a vítima for sexualmente explorada (art. 218-B, CP); em caso de violência, grave ameaça ou fraude (arts. 213 ou 215, CP); ou quando, por outra hipótese que não a idade, a vítima puder ser definida como vulnerável (art. 217-A, CP). Resolveu-se, assim, um anacronismo, pois a lei estava em descompasso com a realidade social, ainda que casos extravagantes (como o citado na notícia) possam induzir raciocínio diverso. Todavia, a excepcionalidade não justifica a normatização da conduta. De outro lado, foi preenchida lamentável lacuna da redação original. Não havia, outrora, corrupção de menores quando a vítima era menor de quatorze anos (mas tão-somente com idade entre 14 e 18 anos), sob o argumento de que tal situação invariavelmente caracterizaria presunção de violência e, por conseguinte, estupro ou atentado violento ao pudor. Entretanto, isso não se aplicava quando o ato sexual não recaía sobre o corpo da vítima (em um caso concreto, deparei-me com um tio que se masturbava em frente à sobrinha de dez anos, sem constrangê-la à observação, pois assim alcançava prazer sexual - o que, pela redação antiga do Código, constutuía fato atípico). Hoje, caso a conduta não se enquadre no disposto no art. 217-A, em sendo a vítima menor de quatorze anos, certamente caracterizar-se-á o crime do art. 218-A, CP.


PORTE DE ARMA DE FOGO


A cabine do caminhão não pode ser considerada nem como uma extensão do local de trabalho e nem como extensão de residência para fins de descaracterizar o porte ilegal de arma de fogo. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) teve esse entendimento em habeas corpus impetrado a favor de caminhoneiro preso próximo ao município de Volta Grande, Minas Gerais.

Em fevereiro de 2007, o caminhoneiro foi flagrado pela Polícia Militar com uma garrucha calibre 32 na cintura, sem autorização ou registro. Ele foi acusado de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, crime previsto no artigo 14 da Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Na primeira instância, o réu foi absolvido. O Ministério Público recorreu e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) o condenou a dois anos de reclusão e multa.

O tribunal mineiro considerou não ser possível desclassificar o crime de porte ilegal para simples posse ilegal de arma de fogo, delito definido no artigo 12 do Estatuto. Para isso, a arma não registrada deveria estar guardada na residência ou local de trabalho do réu. O TJMG opinou que a legislação visa diminuir a circulação de armas, e que considerar veículos como extensão de domicílios tornaria o Estatuto sem serventia.

Extinção de punibilidade

No recurso ao STJ, insistiu-se na classificação como simples posse de arma. A defesa alegou que a cabine do caminhão poderia ser considerada como residência enquanto o réu lá estivesse. Lembrou que era ali que ele exercia sua atividade laborativa e, durante as longas viagens, a cabine servia como moradia e local de repouso noturno. Pediu a desclassificação do porte ilegal e, consequentemente, que fosse declarada a extinção de punibilidade pela abolitio criminis (abolição da pena de conduta anteriormente proibida por lei) temporária trazida pelo Estatuto do Desarmamento de 23 de dezembro de 2003 a 31 de dezembro de 2008.

Não se deve confundir o delito de posse irregular de arma com o de porte, reconheceu o relator do processo, o desembargador convocado Adilson Vieira Macabu. 'Por outro lado, também não se pode considerar o veículo do agente, muito embora utilizado como instrumento de trabalho, como sendo extensão de sua residência ou mesmo de seu local de trabalho, a ponto de interpretar sua ação como sendo simples posse de arma', observou.

Para o magistrado, o caminhão não é extensão da residência ou mesmo do local de trabalho, 'mas apenas instrumento de trabalho que, na hipótese, estava fora desses locais anteriormente citados'. O relator também ponderou que a arma não foi apreendida dentro do caminhão, mas na cintura do réu. 'Ora, à medida que a arma estava presa à cintura do paciente, fica evidente que ele a portava efetivamente e que ela estava ao seu alcance, possibilitando sua utilização imediata', concluiu. Ele foi acompanhado de forma unânime pela Quinta Turma."

Comentário brevíssimo: a lamentar, apenas a chamada abolitio criminis temporária para os casos de posse de arma de fogo, que conduz à inegável impunidade de criminosos. Já é hora de o governo cessar sua política centrada na entrega voluntária de armas, de duvidosa eficácia, e privilegiar o efetivo controle do tráfico internacional de armas.


LEI DE LICITAÇÕES


A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) trancou ação contra ex-prefeita paulista que dispensou licitação para realizar concurso público. A Turma alinhou-se à jurisprudência da Corte Especial e do Supremo Tribunal Federal (STF), entendendo que, se não houve lesão ao erário nem dolo específico de fraudar a concorrência, não há crime.

A então prefeita de Fernandópolis (SP) havia iniciado processo licitatório do tipo convite para realização do concurso em questão. Porém, ela abandonou o procedimento quando recebeu proposta da Fundação Ararense para o Desenvolvimento do Ensino (Fade) para elaborar e aplicar a prova.

Pelo contrato firmado entre a prefeitura e a fundação, ficou acordado que o ressarcimento de despesas com material e serviços prestados pela entidade seria feito diretamente pelos candidatos por meio de cobrança de taxa de inscrição, de modo que a prefeitura não teve gastos com o concurso.

Diante da dispensa de licitação, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) apresentou denúncia contra a prefeita e contra o representante da fundação que realizou o serviço. O órgão alegava que a contratação foi feita fora das possibilidades previstas na Lei 8.666/93, que regulamenta as licitações. O MP também sustentava que a contratação direta da fundação trouxe benefício econômico indevido para seu representante.

Intenção

No STJ, a defesa requereu o trancamento da ação penal ajuizada contra os dois. O pedido já havia sido negado pela corte local. Ela alegava falta de justa causa para a ação e atipicidade da conduta. A defesa argumentou que a dispensa da licitação estaria justificada, pois a abertura de procedimento formal resultaria em gasto público desnecessário, além de perda de tempo na contratação de novos servidores.

Ainda segundo a defesa, não ficou demonstrada na inicial acusatória a vontade dos agentes de dispensar a licitação fora das hipóteses legais. Ela também argumentou que não houve crime contra o erário, já que a prefeitura não teve gastos com a realização do concurso. Por fim, a defesa lembrou que havia um parecer jurídico do município favorável à dispensa da licitação.

O ministro Sebastião Reis Júnior afirmou que 'não se depreende da denúncia, nem dos documentos que acompanham a inicial, terem os pacientes consciência e vontade de realizar o contrato de prestação de serviços em discussão, com o escuso objetivo de desviar, favorecer e obter vantagem indevida, em detrimento do erário público e em favor do particular'.

O relator citou em seu voto que a prefeita publicou no Diário Oficial a dispensa da licitação e o extrato do contrato firmado com a empresa.

Entendimentos contrários

Ao analisar o caso, o ministro disse estar ciente da existência de precedentes da Quinta e da Sexta Turmas no sentido de que, para caracterização de crime previsto no artigo 89 da Lei de Licitações, não se exige o dolo específico ou a comprovação de prejuízo aos cofres públicos. Porém, o relator afirmou que esse entendimento não é o que prevalece atualmente na Corte Especial ou no Supremo Tribunal Federal (STF).

O ministro Sebastião Reis Júnior trouxe em seu voto o julgamento da Ação Penal 480, encerrado no último dia 29 de março. Nesse caso, relatado pelo ministro Cesar Asfor Rocha, a Corte decidiu que é preciso haver intenção de lesar os cofres públicos, além de efetivo dano ao erário, para que o crime seja caracterizado.

A Sexta Turma concedeu o habeas corpus e trancou a ação penal por maioria."

Comentários: em que pese a posição dos Tribunais Superiores, não me parece possível sustentar a atipicidade da conduta. Ainda que nenhum prejuízo tenha sido suportado pela administração pública, esta é regida pelos princípios da moralidade e da impessoalidade, dentre outros. Assim, conceder um tratamento privilegiado a quem quer que seja, com possível locupletamento acima dos valores de mercado, deve ser considerado crime. Além do desprestígio causado ao poder público, há ainda a possibilidade de prejuízo para os administrados, muitas vezes lesados pela cobrança de taxas acima do que poderia ser considerado razoável. Para mais detalhes, recomendo a leitura do texto de José Francisco Seabra Mendes Júnior sobre o tema.


LEI MARIA DA PENHA


Para a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Lei Maria da Penha deve ser aplicada no caso de ameaça (prevista no artigo 147 do Código Penal) feita contra mulher por irmão, ainda que não residam mais juntos, visto que para a configuração do crime de violência contra a mulher não há a exigência de coabitação à época do crime, mas somente a caracterização de relação íntima de afeto.

Em 2009, três homens, irmãos, foram denunciados pela suposta prática de ameaça de morte, em concurso de pessoas, contra a irmã, com quem moravam anteriormente. Na ocasião, ela precisou voltar à casa para buscar objetos pessoais e teria sido advertida por eles de que, se entrasse, seria morta.

O Ministério Público se manifestou para que fosse aplicada ao caso a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). O juízo da 4ª Vara Criminal de Santa Maria (RS) suscitou conflito de competência e encaminhou os autos ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), por entender que o caso não se enquadra na referida lei.

É aplicável

Entretanto, ao julgar o conflito, o tribunal estadual discordou do magistrado, entendendo que a lei de proteção à mulher deveria ser aplicada e considerando-o competente para decidir a respeito.

Diante de tal decisão, os irmãos impetraram habeas corpus no STJ. A defesa afirmou que o suposto fato ocorreu entre irmãos, que já não moravam mais juntos nem mantinham relação de dependência financeira, o que, segundo ela, não se enquadra nas hipóteses da Lei 11.340.

Para a defesa, com o afastamento da aplicação da Lei Maria da Penha, o caso deveria ser transferido da 4ª Vara Criminal para o Juizado Especial Criminal.

O relator do habeas corpus, ministro Og Fernandes, mencionou que um caso semelhante foi apreciado pelo STJ no julgamento do REsp 1.239.850. Na oportunidade, a Quinta Turma decidiu que a relação existente entre o sujeito ativo e o passivo deve ser analisada em face do caso concreto, para verificar se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada, sendo desnecessário que se configure a coabitação entre eles.

Para Og Fernandes, o caso se amolda àqueles protegidos pela Lei 11.340, 'já que caracterizada a relação íntima de afeto, em que os agressores, todos irmãos da vítima, conviveram com a ofendida, inexistindo a exigência de coabitação no tempo do crime para a configuração da violência doméstica contra a mulher'.

Por esses motivos, a Sexta Turma negou, por maioria, o habeas corpus, vencida a ministra Maria Thereza de Assis Moura."

Comentários: como a própria notícia assinala, a aplicação da Lei 11.340/06 "deve ser analisada em face do caso concreto". Isso permite que se reafirme a interpretação teleológica do diploma legal. Ou seja, a subsunção do caso à lei fica a depender a situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência da vítima, bem como dos demais requisitos normativos. Não são apenas a relação de parentesco, de convivência em ambiente doméstico ou de afetividade que justificarão a imposição da Lei Maria da Penha quando a vítima é mulher, devendo ser averiguada a necessidade da aplicação das medidas restritivas nela previstas. Todavia, não há óbice à incidência da lei caso inexista relação de coabitação ou de dependência econômica, pois inúmeras são as justificativas para a vulnerabilidade.


VALOR ECONÔMICO E CRIME DE FURTO


A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou condenação de homem flagrado por policiais no interior de um veículo, tentando furtar um toca-fitas quebrado. Segundo o proprietário do carro, o equipamento apenas tapava o buraco no painel. A Turma absolveu o réu, condenado inicialmente a regime fechado de pena.

Para cometer o crime, o condenado fez uso de uma chave falsa. Ele não conseguiu nem mesmo retirar o equipamento do console do carro antes de ser interrompido. O aparelho foi identificado primeiramente como toca-CDs, com valor presumido de R$ 100.

No entanto, a perícia verificou que se tratava de toca-fitas sem funcionamento. Os ministros entenderam que o objeto do crime não tem valor comercial, não havendo tipicidade material de lesão ao patrimônio.

Regime fechado

Pelo delito, o homem havia sido condenado a dois anos e oito meses de reclusão em regime inicial fechado. Inconformada, a defesa apelou da sentença e a corte local diminuiu a pena para dez meses de reclusão.

Em habeas corpus impetrado no STJ, a defesa pedia a aplicação do princípio da insignificância, argumentando que o objeto sem valor comercial nem chegou a ser levado do carro.

O ministro Sebastião Reis Júnior, porém, julgou que não se trata de insignificância. A atipicidade material da conduta, afirmou, decorre da falta de valor comercial do toca-fitas.

'Se a coisa cuja subtração foi tentada não tem valor econômico, não há crime contra o patrimônio', concluiu. A Turma concedeu a ordem por maioria, para cassar a condenação do paciente e declarar sua absolvição."

Comentários: o texto permite entrever a opção jurisprudencial, nesse caso específico, pelo caráter exclusivamente econômico do crime de furto. Não comungo da mesma opinião. Entendo que o patrimônio, em direito penal, tem uma acepção que vai além da apreciação monetária, abrangendo de igual forma os valores sentimental e de uso. Sobre o tema já tive a oportunidade de escrever: "Assim, não escapam à maioria dos doutrinadores algumas ressalvas à concepção civilista do patrimônio, vez que o direito penal não estende a sua proteção ao aspecto passivo patrimonial, bem como contempla não apenas aquelas relações jurídicas de conteúdo economicamente apreciável, mas também os bens de valor meramente afetivo ou de uso, ainda que não possam ser reduzidos a um valor em dinheiro. Bens que, para o direito civil, não poderiam compor o patrimônio da pessoa, como fotos de família, por exemplo, podem ser objetos de crimes patrimoniais, como o furto.  Não é outra a lição do eminente jurista Weber Martins Batista: 'Ora, é evidente que esta concepção civilista de patrimônio diverge, em quantidade e qualidade, da concepção penalista. De um lado, porque compreende o aspecto negativo do patrimônio, que é estranho ao Direito Penal. De outro, porque não abrange os bens de valor meramente afetivo, que, data venia de uma parte da doutrina, podem ser objeto material de crimes contra o patrimônio'." (Direito Penal III, Editora IOB Thomsom).

Abraços a todos!

3 comentários:

  1. Bruno, veja esse link recente sobre o furto e insignificancia.. o q vc acha??? http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo670.htm#Princ%EDpio%20da%20insignific%E2ncia%20e%20furto%20-%202

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  2. E veja tb, a interesante questao do latrocinio e nexo causal..

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  3. Marcelo, vi suas recomendações e achei muito interessantes. Inclusive as coloquei na nova edição do meu livro. Abs.

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