terça-feira, 29 de maio de 2012

Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial: comentários ao artigo 135-A do Código Penal

Ontem foi publicada a Lei n. 12.653, que disciplinou o crime de "condicionamento de atendimento médico-hospitalar de emergência" (eu sei, a denominação é péssima), assim disciplinado: "Artigo 135-A - Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial: pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta morte."

Trata-se de crime de perigo concreto, ou seja, o delito em comento se conforma com a simples produção de uma situação de risco para seu aperfeiçoamento, rejeitando a intenção de lesionar os bens jurídicos tutelados (integridade corporal, saúde e vida), mas exigindo perigo efetivo (risco demonstrado). Tal assertiva é decorrência da própria redação da norma, que menciona unicamente o atendimento hospitalar de emergência, isto é, aquele que impõe uma rápida intervenção médica, a fim de evitar a piora no estado de saúde geral da vítima.

Em se cuidando de um crime de perigo, obviamente os resultados previstos no parágrafo único somente vão se operar a título de culpa. Temos, aqui, o delito preterintencional. Essa é a única conclusão possível, até mesmo em virtude da sanção penal, que, no resultado lesão grave, é acrescida em três meses e um ano (totalizando seis meses a dois anos), nos limites mínimo e máximo respectivamente, e, no resultado morte, seis meses a dois anos (totalizando nove meses a três anos de detenção). Havendo dolo, passamos a ter crime de homicídio (artigo 121 do Código Penal) ou lesão corporal qualificada (artigo 129, p. 1o e 2o). Verifica-se, outrossim, que apenas a modalidade qualificada pelo resultado morte escapa à disciplina da Lei n. 9.099/95.

O crime se consuma com a exigência (seja da garantia ou do preenchimento de formulários), seguida de omissão no atendimento médico-hospitalar, ainda que este seja prestado após a abstenção inicial. Ou seja, temos uma conduta comissiva (a exigência) seguida de uma conduta omissiva (o não-atendimento).(**) Deve ser percebido que não é crime apenas exigir cheque-caução ou demais títulos ou documentos mencionados na norma, senão quando impostos como condição ao atendimento, razão pela qual o comportamento omissivo deve se fazer presente. Apesar do esforço intelectual, não consegui vislumbrar nenhum exemplo de tentativa criminosa, imaginando ser esta impossível.

No polo ativo da norma figuram aquele que deu a ordem para a exigência (por exemplo, diretor do hospital), assim como o funcionário que pratica o núcleo do tipo e eventuais pessoas que participem do evento. O sujeito passivo primário é o paciente e o secundário é o emitente do cheque-caução ou o signatário da nota promissória e demais documentos, constrangido pela exigência.

Cheque-caução, nota promissória e formulários administrativos são os elementos normativos do tipo penal. Primeiro é o cheque emitido como forma de assegurar o pagamento posterior de dívida contraída. Cheque, como se sabe, consiste em um título representativo de um direito de crédito, concretizado em ordem de pagamento à vista. Assim, o título pós-datado não é um cheque na real acepção da palavra. Mas mesmo ele serve para integrar a redação típica, pois não perde sua natureza de título cambialiforme ou de título executivo extrajudicial, servido à expressão genérica "qualquer garantia". Nota promissória é uma promessa de pagamento, consistindo em um título em que o criador assume a obrigação direta e principal de adimplir para com o valor nela constante, obedecendo aos requisitos dos artigos 75 e 76 da Lei Uniforme. Tanto a expressão "cheque-caução", quanto "nota promissória", são fórmulas casuísticas, as quais se segue a formulação genérica "qualquer garantia", em verdadeira interpretação analógica. Por formulários administrativos temos os cadastros prévios, formulários de planos de saúde ou qualquer papel ou base de dados que exija a prestação de informações em oposição à imediata prestação de auxílio.

Evidentemente, a análise aqui exposta não tem esteio em orientações doutrinárias ou jurisprudenciais, dada a recenticidade da matéria. Assim, é natural que surjam outros questionamentos, ou seja desautorizada alguma particularidade do artigo, em homenagem ao salutar debate jurídico. Mas ficam consignadas minhas impressões iniciais.

Abraços a todos!

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(**) Em postagem no facebook, Cezar Roberto Bitencourt esposou posição semelhante: "A Lei 12.653, de 29 de maio de 2012, acrescentou à Parte Especial do Código Penal, mais precisamente no Capítulo III (Da periclitação da vida e da saúde), um novo crime, que, a nosso juízo, embora seja uma conduta comissiva, não deixa de ser uma espécie sui generis de crime omissivo, que diríamos, como se fora uma modalidade de “omissão condicionada”, com exigências formais postergando o atendimento médico emergencial de pacientes. Aliás, nesse sentido, a localização topográfica da nova infração penal é denunciadora – art. 135-A -, isto é, ao lado da omissão de socorro. Contudo, embora mascare, de certa forma, essa omissão com o retardamento burocrático, a verdade é que a conduta incriminada – exigir – constitui comportamento que só pode ser realizado comissivamente. Com efeito, não se pode ignorar que as exigências impostas pelos representantes das instituições de saúde, especialmente aquelas de natureza emergencial, trazem em seu bojo uma omissão representada pelo retardamento indevido do atendimento de vítima em situação que exige imedatidez (definida como urgente ou emergente, indiferentemente, pois ambas podem ser consideradas como sinônimas). Em outros termos, há uma omissão (de socorro) seguida de uma comissão (exigências de garantias e formalidades), resultando criminalizado, contudo, somente o segundo momento, qual seja, a exigência da condição imposta para o atendimento; nesse sentido, não vemos como exagero ou equívoco metodológico conceituá-la como uma espécie sui generis de omissão de socorro condicionada."

8 comentários:

  1. Não entendi a parte do homicidio. seia pela omissão impropria do médico ou viajei, rs.?-

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  2. Outra visão: http://atualidadesdodireito.com.br/rogeriosanches/2012/05/29/alteracao-do-art-135-a-do-cp-condicionamento-de-atendimento-medico-hospitalar-emergencial/

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  4. Bruno, queria tirar uma dúvida contigo, como não estou frequentando a Estácio neste semestre, fica difícil te encontrar. É q há tempos discuto com um colega meu acerca do fragrante provocado. Segundo ele, os exemplos dados, tanto da caixa do estabelecimento quanto do policial q induz o sujeito a pegar droga não se trata de flagrante provocado. Já falei q ele estava equivocado, pelo menos em termos de "concurso". Aí, surgiu um caso de um programa nos EUA, chamado carros iscas, onde os agentes policias deixam um carro aberto propositadamente e ficam observando de longe e de uma central, esperando q alguém entre no carro e furte e quando o agente furta, comeca a perseguição e a central trava as portas.. e o cara é preso. A minha dúvida é se esse flagrante é provocado(entendo q sim) e se o ladrão estiver sendo procurado pela justiça, esse flagrante ilegal, pois provocado é, pode servir ao menos para capturar o ladrão fugitivo e o prender pelo crime q o faz estar sendo procurado???

    abc!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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    1. vou postar o raciocínio do amigo Rodrigo.
      "Instigação é a dolosa colaboração de ordem espiritual
      objetivando o cometimento de um crime doloso. Carrara
      buscou sistematizar as formas que pode tomar a instigação,
      e falava do MANDATO, DA COAÇÃO, DO COMANDO, DO CONSELHO e DA SOCIDADE; entre nós, Aníbal Bruno falava
      de mandato, comando, conselho e ameaça. Na verdade
      como diz Wessels: "é indiferente como o instigador alcança seu objetivo. Meios de instigação podem ser todas as possibilidades
      de influência volitiva: persuasão, dádivas, promessa de recompensa, provocação de um erro de motivo, abuso de uma relação de subordinação, ameaça etc". O chamado princípio da irredutibilidade se opõe a uma configuração exaustiva desses meios. De qualquer forma, só se concebe a instigação dolosa: deve o partícipe ter a "intenção de instigar" a que se referia Beling.560 A denominação instigação abrange a determinação e a instigação propriamente dita. Por determinação se compreende a conduta que faz surgir no autor direto a resolução que o conduz à execução; por instigação propriamente dita se compreende a conduta que faz reforçar e desenvolver no autor direto uma resolução ainda não concretizada, mas preexistente.561 O Código Penal estabelece em mais de uma passagem a distinção (art.31; art. 62, inc. III)." (Batista, Nilo. Concurso de Agentes, p. 181).


      Adéque a conduta de deixar o carro aberto a alguma forma de instigação descrita aí. Não há como, Marcelo. Não há instigação.

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    2. Adéque a conduta de deixar o carro aberto a alguma forma de instigação descrita aí. Não há como, Marcelo. Não há instigação.

      Como te perguntei naquele tópico, qual o crime e a que título responderia o motorista que, desejando que o carro do patrão seja furtado, deixa o carro aberto em região que sabe ser de alta incidência de furto?

      Participação em furto. Por instigação? Não. Responde, se for o caso, por cumplicidade (auxílio material - e, ainda assim, há discussão mesmo quanto a esta). Logo, não há instigação (ou induzimento) também nos exemplos que discutimos. E a provocação está reduzida (doutrina espanhola, tribunal espanhol, dissertação do Rodrigo Fragoso) à instigação (lato sensu, que engloba o induzimento).

      Sobre sua pergunta, resposta acima (do livro do Nilo). Deixar carro aberto não é "MANDATO, DA COAÇÃO, DO COMANDO, DO CONSELHO e DA SOCIDADE" ou "mandato, comando, conselho e ameaça" ou "persuasão, dádivas, promessa de recompensa, provocação de um erro de motivo, abuso de uma relação de subordinação, ameaça etc."

      Ainda seguindo as definições de Nilo Batista, responderia que deixar o carro aberto ou dinheiro no caixa não é instigação/induzimento porque em nenhum desses exemplos o agente faz surgir ideia criminosa ou reforça. Nos nossos exemplos, o agente criminoso se encontra a procura da exata facilidade. O agente já furtava todos os dias (carro/dinheiro/casa). Passava pelo local, mais uma vez, para furtar, sem nem saber da facilitação do "provocador", sem esperar por ela. Ele procurava a facilidade. Não há relevância causal alguma na conduta do "provocador" que deixou o carro aberto. A conduta de facilitar de nada contribuiu no ânimo do agente. Falta relevância causal, falta participação, falta instigação ou induzimento. O agente já estava no local a procura de bens para furtar.

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    3. O conceito jurídico-penal de instigação/induzimento é técnico, Marcelo. E deixar carro aberto não é instigação/induzimento. Pode ser, em determinados casos (porque há séria discussão), auxílio (ou cumplicidade), mas não instigação.
      É na ausência de instigação que sempre bati em nossas discussões: falta influência da ação (deixar carro aberto) no ânimo do agente. Falta a "provocação".
      Há provocação em casos como: "o policial diz ao ladrão - que não sabe que se trata de policial -: vá lá e furte o carro tal, porque o dono sempre deixa o carro aberto". Neste exemplo, há instigação. Mas no caso de só deixar o carro aberto, não há instigação. Instigação por omissão (embora seja discutível se deixar o carro aberto seja ação ou omissão)? Instigação por omissão é algo inconcebível, já dizia Heleno Fragoso.

      FIM... da uma ajuda aí, Bruno, por favor!!! abc!!

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